UOL


São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Entre quatro paredes

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

São poucos os escritores que escrevem indistintamente prosa e poesia. Quando acontece, geralmente um gênero obscurece o outro. É fácil detectar isso nos clássicos: o Machado de Assis poeta é lido à sombra do Machado de Assis romancista; um livro como "Magma", que reúne poemas de Guimarães Rosa, não passa de curiosidade bibliográfica perto de "Sagarana" ou "Grande Sertão: Veredas".
Poetas como Ferreira Gullar e Paulo Leminski produziram prosa de alta qualidade ("Cidades Inventadas" e "Catatau", respectivamente), mas são escassos os exemplos de escritores em que ficção e lírica estão em pé de igualdade (casos de Mário e Oswald de Andrade).
Quando falamos de novos escritores, é ainda mais difícil saber qual gênero vai predominar, pois há uma espécie de contaminação recíproca. Por isso um livro como "As Mãos", de Manoel Ricardo de Lima, pode ser lido tanto como exercício ficcional de um poeta que já havia publicado um excelente livro de versos ("Embrulho"), quanto como narrativa em que a linguagem se torna ela mesma personagem, resultando em um longo poema em prosa.
Existe um enredo em "As Mãos": há um narrador que, ao longo de cinco capítulos, se enclausura em seu apartamento ("vivo um confinamento de tempo, tudo é dentro de casa") e sofre por causa da separação de uma mulher a que se refere como "Ela". Mas a matéria-prima do livro é um movimento de escrita no qual a realidade (acessível ao olhar que o narrador lança pela janela) não importa; e no qual aquilo que importa (a mulher perdida) é inacessível, tornou-se irreal.
Por isso a descrição desse confinamento vai sendo, por sua vez, insularizada em frases elípticas, como se a consciência do narrador flutuasse entre lapsos de tempo e fantasmas de objetos, fazendo com que o mundo empírico adquira uma presença abstrata. A rua, por exemplo, se transforma na expressão "Lá fora" e passa a ser uma espécie de entidade que assombra o narrador:
"Desta mesa só consigo ver os homens, lá, pela vidraça, Lá fora, como uma farsa, provável, famintos, miseráveis desta condição. (...) Apenas daqui, pela janela que fica frente à mesa onde apóio os braços e escrevo, aqueles homens lá, inventados pela insipidez do que nos seres humanos é podridão ordem desvio dobra funil desmesura. O que nos é real, talvez seja, ao menos, uma ilusão de fato. E tenho me revirado em busca das últimas moradas que tenho dEla".
No início do livro, o narrador literalmente fala com as paredes: "As paredes explicam que o tempo, passagem, esgotamento, cansaço, se faz nas variantes desorganizadas de meu estado". Ao final, porém, seu "dizer seco" se esgarça num acúmulo de lembranças (cenas, gestos, impressões, coisas, sons, frases) cuja sintaxe espasmódica transforma as palavras em notas musicais, em lampejos de um monólogo.
Em "As Mãos", portanto, não há exatamente uma indefinição entre prosa e poesia, mas uma passagem da prosa para a poesia. A separação amorosa produz o divórcio com o real -e a descrição desse real vai progressivamente deixando de ter uma dicotomia entre narrador e evento narrado (típica de gêneros como a épica e o romance) até suprimir a distância que há entre o poeta-narrador e o mundo, que passa a coincidir com a linguagem que o descreve (uma característica da lírica).
E essa coincidência é tão absoluta que atinge a própria divisão interna da novela. Pois, se o texto retoma em vários momentos uma frase que o narrador ouvira da mulher ("Perto não se fica a quem não se conhece as mãos"), os capítulos também são dispostos como dedos da mão: às seções iniciais ("Um", "Dois", "Três", "Quatro"), segue-se um curto epílogo intitulado novamente "Um", como se fora o polegar cerrando o punho, encapsulando uma narrativa que culmina na conclusão de que "Lá fora, custa-me dizer, não existe mais".
Uma conclusão que pode ser interpretada como solipsismo. Mas que também mostra como, nesse livro híbrido, Manoel Ricardo de Lima tenta unir prosa e poesia numa revanche contra a realidade.


As Mãos   
Autor: Manoel Ricardo de Lima
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 14 (52 págs.)



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Livro/lançamento - Literatura: Bernardo Carvalho desmitifica a Mongólia
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.