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RODAPÉ
Entre quatro paredes
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
São poucos os escritores que
escrevem indistintamente
prosa e poesia. Quando acontece,
geralmente um gênero obscurece
o outro. É fácil detectar isso nos
clássicos: o Machado de Assis
poeta é lido à sombra do Machado de Assis romancista; um livro
como "Magma", que reúne poemas de Guimarães Rosa, não passa de curiosidade bibliográfica
perto de "Sagarana" ou "Grande
Sertão: Veredas".
Poetas como Ferreira Gullar e
Paulo Leminski produziram prosa de alta qualidade ("Cidades Inventadas" e "Catatau", respectivamente), mas são escassos os
exemplos de escritores em que
ficção e lírica estão em pé de igualdade (casos de Mário e Oswald de
Andrade).
Quando falamos de novos escritores, é ainda mais difícil saber
qual gênero vai predominar, pois
há uma espécie de contaminação
recíproca. Por isso um livro como
"As Mãos", de Manoel Ricardo de
Lima, pode ser lido tanto como
exercício ficcional de um poeta
que já havia publicado um excelente livro de versos ("Embrulho"), quanto como narrativa em
que a linguagem se torna ela mesma personagem, resultando em
um longo poema em prosa.
Existe um enredo em "As
Mãos": há um narrador que, ao
longo de cinco capítulos, se enclausura em seu apartamento
("vivo um confinamento de tempo, tudo é dentro de casa") e sofre
por causa da separação de uma
mulher a que se refere como
"Ela". Mas a matéria-prima do livro é um movimento de escrita no
qual a realidade (acessível ao
olhar que o narrador lança pela
janela) não importa; e no qual
aquilo que importa (a mulher
perdida) é inacessível, tornou-se
irreal.
Por isso a descrição desse confinamento vai sendo, por sua vez,
insularizada em frases elípticas,
como se a consciência do narrador flutuasse entre lapsos de tempo e fantasmas de objetos, fazendo com que o mundo empírico
adquira uma presença abstrata. A
rua, por exemplo, se transforma
na expressão "Lá fora" e passa a
ser uma espécie de entidade que
assombra o narrador:
"Desta mesa só consigo ver os
homens, lá, pela vidraça, Lá fora,
como uma farsa, provável, famintos, miseráveis desta condição.
(...) Apenas daqui, pela janela que
fica frente à mesa onde apóio os
braços e escrevo, aqueles homens
lá, inventados pela insipidez do
que nos seres humanos é podridão ordem desvio dobra funil
desmesura. O que nos é real, talvez seja, ao menos, uma ilusão de
fato. E tenho me revirado em busca das últimas moradas que tenho
dEla".
No início do livro, o narrador literalmente fala com as paredes:
"As paredes explicam que o tempo, passagem, esgotamento, cansaço, se faz nas variantes desorganizadas de meu estado". Ao final,
porém, seu "dizer seco" se esgarça
num acúmulo de lembranças (cenas, gestos, impressões, coisas,
sons, frases) cuja sintaxe espasmódica transforma as palavras
em notas musicais, em lampejos
de um monólogo.
Em "As Mãos", portanto, não
há exatamente uma indefinição
entre prosa e poesia, mas uma
passagem da prosa para a poesia.
A separação amorosa produz o
divórcio com o real -e a descrição desse real vai progressivamente deixando de ter uma dicotomia entre narrador e evento
narrado (típica de gêneros como a
épica e o romance) até suprimir a
distância que há entre o poeta-narrador e o mundo, que passa a
coincidir com a linguagem que o
descreve (uma característica da lírica).
E essa coincidência é tão absoluta que atinge a própria divisão interna da novela. Pois, se o texto retoma em vários momentos uma
frase que o narrador ouvira da
mulher ("Perto não se fica a quem
não se conhece as mãos"), os capítulos também são dispostos como dedos da mão: às seções iniciais ("Um", "Dois", "Três",
"Quatro"), segue-se um curto epílogo intitulado novamente "Um",
como se fora o polegar cerrando o
punho, encapsulando uma narrativa que culmina na conclusão de
que "Lá fora, custa-me dizer, não
existe mais".
Uma conclusão que pode ser interpretada como solipsismo. Mas
que também mostra como, nesse
livro híbrido, Manoel Ricardo de
Lima tenta unir prosa e poesia numa revanche contra a realidade.
As Mãos
Autor: Manoel Ricardo de Lima
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 14 (52 págs.)
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