São Paulo, quarta-feira, 11 de outubro de 2006

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MARCELO COELHO

Pais e filhos no mundo do consumo

Os produtos falam por si mesmos, e são eles próprios publicidade de alguma outra coisa

CORRE NO Congresso, melhor dizendo, está parado no Congresso um projeto de lei proibindo os anúncios diretamente voltados para o público infantil. Se aprovado, traria obviamente um grande alívio para os pais, incapazes de contrapor seus purês de batata e filezinhos de peixe às emoções de um cheeseburger triplo com picles e pão de gergelim, para não falar da quantidade de nachitos, ceboletos, traquinos, chocobombas e kremitos que pululam nas prateleiras dos supermercados. Até mesmo os sucos "naturais" de caixinha dispõem de modalidades voltadas para o paladar infantil; pelo que me dizem adultos confiáveis (abomino sucos), esses produtos chegam a ser pegajosos de tanto açúcar que contêm.
Uma reportagem na Folhinha, algumas semanas atrás, mostrava os altos percentuais de gordura saturada nos biscoitos preferidos do pequeno consumidor e apresentava um novo vilão alimentar, contra o qual a força de todos os Power Rangers recua amedrontada: o Capitão Sódio. Esconde-se em qualquer salgadinho, submetendo todos às garras letais do vício. De fato, seria esse o fator químico responsável pela vontade insuperável de comer sempre "mais um" daqueles tostitos, daqueles bokochips à espreita no recesso farfalhante e seco do pacote.
Toda mãe, pai ou babá já vivenciou a cena do "piti no supermercado", quando a criança de dois ou três anos rola de infelicidade, raiva e angústia diante das gôndolas cheias de chocolates e chicletes.
Birras de criança são sempre incompreensíveis, mas, nesse caso, não deixam de expressar o dilaceramento secreto de todo consumidor, pequeno ou grande. Estamos numa situação em que a liberdade de escolha é certamente considerável, mas é acompanhada de uma virtual escravidão.
Podemos escolher entre inúmeros produtos, mas cada um deles tende a nos impor, graças aos prazeres particulares que oferece, o esboço de uma dependência química... Liberdade e compulsão constituem as duas faces da sociedade de consumo, contra a qual poucas pessoas têm anticorpos. Só quem já é saudável prefere alimentos saudáveis.
A publicidade é o óleo da engrenagem, mas, de certo modo, os produtos falam por si mesmos, e são eles próprios publicidade de alguma outra coisa; a pipoca vende o filme, e o filme vende a pipoca. O brinquedo replica o desenho animado, e o desenho animado põe brinquedos para funcionar. A criança se diverte, sem dúvida, mas a um dado momento se descabela e esperneia -e ainda nos espantamos com isso.
Em todo caso, já fui comprar meus presentes para o Dia da Criança. Digo "meus presentes" porque não sei quem é a parte mais frágil, psicologicamente, a entrar numa loja de brinquedos. A criança pode ser mobilizada pela publicidade, pela TV, pelos apresentadores e celebridades que conhecemos mal e mal. Os pais, contudo, rendem-se ao apelo concreto e palpável das surpresas, das perfeições, das astúcias dos objetos que encontram à sua frente.
"Como é que não tiveram essa idéia antes?", pergunta-se o adulto diante dos brinquedos agora disponíveis para seus filhos ou netos. Cada loja de brinquedos parece ter sido criada, agora, pela Fada dos Desejos, colocando à venda coisas por vezes até simples, mas que nunca -pensávamos- eram capazes de adquirir existência real.
O sapatinho de Cinderela, por exemplo: pode ser comprado hoje em dia. Para uma criança, é apenas um acessório da roupa da princesa, e não há muito o que fazer com ele.
Para o adulto, é como se o espaço entre o mundo das histórias de sua infância e o mundo dos brinquedos reais se unificasse, numa espécie de "presentificação" absoluta. Fala-se muito do predomínio do "virtual", das imagens de computador, das experiências simuladas invadindo a vida contemporânea.
Há, entretanto, um complemento disso, que é uma espécie de hiper-realismo, de replicação, de duplicação, de clonagem perfeita das imagens virtuais no mundo concreto.
Os personagens do desenho animado "Carros", por exemplo, tornaram-se brinquedos iguaizinhos ao original e estão à venda em qualquer loja da cidade. Vi um dia desses uma boneca que fala, mama, faz xixi e chora. Ah, mas isso existe há décadas... Não; você não viu a boneca que eu vi. Não sei que dispositivo eletrônico controla seus músculos faciais; a boca se projeta e recua, as bochechas se movem, os olhos se mexem. É menos uma boneca que um andróide de trancinhas. Mais alguns anos e ela se candidata a algum cargo eletivo. Será a vitória final da realidade sobre a imaginação.


coelhofsp@uol.com.br

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