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MARCELO COELHO
Pais e filhos no mundo do consumo
Os produtos falam por si mesmos, e são eles próprios publicidade de alguma outra coisa
CORRE NO Congresso, melhor
dizendo, está parado no Congresso um projeto de lei proibindo os anúncios diretamente voltados para o público infantil. Se
aprovado, traria obviamente um
grande alívio para os pais, incapazes
de contrapor seus purês de batata e
filezinhos de peixe às emoções de
um cheeseburger triplo com picles e
pão de gergelim, para não falar da
quantidade de nachitos, ceboletos,
traquinos, chocobombas e kremitos
que pululam nas prateleiras dos supermercados. Até mesmo os sucos
"naturais" de caixinha dispõem de
modalidades voltadas para o paladar
infantil; pelo que me dizem adultos
confiáveis (abomino sucos), esses
produtos chegam a ser pegajosos de
tanto açúcar que contêm.
Uma reportagem na Folhinha, algumas semanas atrás, mostrava os
altos percentuais de gordura saturada nos biscoitos preferidos do
pequeno consumidor e apresentava um novo vilão alimentar, contra
o qual a força de todos os Power
Rangers recua amedrontada: o Capitão Sódio. Esconde-se em qualquer salgadinho, submetendo todos às garras letais do vício. De fato, seria esse o fator químico responsável pela vontade insuperável
de comer sempre "mais um" daqueles tostitos, daqueles bokochips à espreita no recesso farfalhante e seco do pacote.
Toda mãe, pai ou babá já vivenciou a cena do "piti no supermercado", quando a criança de dois ou
três anos rola de infelicidade, raiva
e angústia diante das gôndolas
cheias de chocolates e chicletes.
Birras de criança são sempre incompreensíveis, mas, nesse caso,
não deixam de expressar o dilaceramento secreto de todo consumidor, pequeno ou grande. Estamos
numa situação em que a liberdade
de escolha é certamente considerável, mas é acompanhada de uma
virtual escravidão.
Podemos escolher entre inúmeros produtos, mas cada um deles
tende a nos impor, graças aos prazeres particulares que oferece, o
esboço de uma dependência química... Liberdade e compulsão
constituem as duas faces da sociedade de consumo, contra a qual
poucas pessoas têm anticorpos. Só
quem já é saudável prefere alimentos saudáveis.
A publicidade é o óleo da engrenagem, mas, de certo modo, os produtos falam por si mesmos, e são
eles próprios publicidade de alguma outra coisa; a pipoca vende o
filme, e o filme vende a pipoca. O
brinquedo replica o desenho animado, e o desenho animado põe
brinquedos para funcionar. A
criança se diverte, sem dúvida, mas
a um dado momento se descabela e
esperneia -e ainda nos espantamos com isso.
Em todo caso, já fui comprar
meus presentes para o Dia da
Criança. Digo "meus presentes"
porque não sei quem é a parte mais
frágil, psicologicamente, a entrar
numa loja de brinquedos. A criança
pode ser mobilizada pela publicidade, pela TV, pelos apresentadores e celebridades que conhecemos
mal e mal. Os pais, contudo, rendem-se ao apelo concreto e palpável das surpresas, das perfeições,
das astúcias dos objetos que encontram à sua frente.
"Como é que não tiveram essa
idéia antes?", pergunta-se o adulto
diante dos brinquedos agora disponíveis para seus filhos ou netos.
Cada loja de brinquedos parece ter
sido criada, agora, pela Fada dos
Desejos, colocando à venda coisas
por vezes até simples, mas que
nunca -pensávamos- eram capazes de adquirir existência real.
O sapatinho de Cinderela, por
exemplo: pode ser comprado hoje
em dia. Para uma criança, é apenas
um acessório da roupa da princesa,
e não há muito o que fazer com ele.
Para o adulto, é como se o espaço
entre o mundo das histórias de sua
infância e o mundo dos brinquedos
reais se unificasse, numa espécie
de "presentificação" absoluta.
Fala-se muito do predomínio do
"virtual", das imagens de computador, das experiências simuladas invadindo a vida contemporânea.
Há, entretanto, um complemento
disso, que é uma espécie de hiper-realismo, de replicação, de duplicação, de clonagem perfeita das imagens virtuais no mundo concreto.
Os personagens do desenho animado "Carros", por exemplo, tornaram-se brinquedos iguaizinhos
ao original e estão à venda em qualquer loja da cidade. Vi um dia desses uma boneca que fala, mama, faz
xixi e chora. Ah, mas isso existe há
décadas... Não; você não viu a boneca que eu vi. Não sei que dispositivo eletrônico controla seus músculos faciais; a boca se projeta e recua, as bochechas se movem, os
olhos se mexem. É menos uma boneca que um andróide de trancinhas. Mais alguns anos e ela se candidata a algum cargo eletivo. Será a
vitória final da realidade sobre a
imaginação.
coelhofsp@uol.com.br
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