São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2008

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LIVROS

Bom livro de Jordan compensa má fase em longas

"Sombras do Passado" é o quarto romance do cineasta irlandês Neil Jordan, mas o segundo lançado no Brasil

História se passa em um vilarejo da Irlanda e traz personagens com a mesma riqueza vista nos melhores filmes que Jordan já fez


SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Como cineasta, o irlandês Neil Jordan, 58, não vive um bom momento. Seu 15º longa-metragem, "Valente" (2007), nem mesmo foi lançado nos cinemas do Brasil: seguiu direto para DVD depois de ser exibido na Mostra Internacional de São Paulo. Ambientado em uma Nova York sombria e violenta, o filme (apenas dirigido por Jordan, que não assina o roteiro) transforma uma radialista (Jodie Foster) em versão anacrônica do personagem de Charles Bronson em "Desejo de Matar" (1974). Como escritor, no entanto, as notícias são bem melhores. "Sombras do Passado" (2004), seu quarto romance (apenas um dos anteriores, "Linhas da Noite", foi publicado no Brasil), o traz de volta a um cenário mais familiar e afetivo, um vilarejo da Irlanda, e a um modo de caracterização de personagens e cenários bem próximo da riqueza dos melhores filmes que escreveu e dirigiu, como "Traídos pelo Desejo" (1992) e "Fim de Caso" (1999), baseado em romance de Graham Greene. "Sei exatamente quando morri", diz no início a primeira (e principal) das vozes que se entrelaçam na narrativa de "Sombras do Passado", a de Nina Hardy, atriz de teatro e cinema. Como a frase sugere, ela passa a contar sua história a partir de um lugar em que a noção de tempo já não corresponde mais à nossa. Para ela, tudo agora é presente. As circunstâncias de sua morte e a infância como filha única, no início do século 20, em um casarão à beira do rio Boyne, são igualmente vívidas.

Lendas e lirismo
Como um espírito onipresente disposto sobretudo a se reencontrar com quem ela foi para se compreender um pouco melhor, Nina revisita esses momentos com uma intensa carga de lirismo. Conhecemos seus pais antes mesmo que se casassem, acompanhamos a mudança dos dois para uma região impregnada de lendas relacionadas a mulheres e à água. Do outro lado do rio, vivia um casal de irmãos pobres, Janie e George, companheiros inseparáveis de Nina durante a infância e a adolescência. Um quarto personagem se integrou mais tarde ao grupo: Gregory, meio-irmão inglês de Nina, cuja existência a família desconhecia. As relações entre os quatro são iluminadas com mais força a partir do momento em que a narrativa alterna o ponto de vista metafísico de Nina com os de Janie e de Gregory. Sobreviventes amargurados da tragédia que resulta na morte de Nina, eles se voltam com nostalgia para os anos vividos juntos.

Triste balada
Enquanto cada um deles passa a compreender melhor os sentimentos que moveram uns em direção aos outros, o leitor (e só ele) adquire compreensão mais ampla do que realmente estava em jogo, em quebra-cabeça que não se consegue montar até que a figura mais fascinante do romance, o brutamontes George, revele por relatos indiretos o que sustentava sua lealdade canina aos demais, e a Nina, em especial. Nessa triste balada, a casa onde ocorre a maior parte dos eventos e o mítico rio Boyle são também personagens, esculpidos em palavras com a lentidão de quem se beneficia do que a literatura oferece, em contraste com os imperativos mais urgentes da indústria cinematográfica atual. Jordan mostra que seus filmes mais recentes podem não ir bem, mas que a sua obra prossegue na toada irlandesa que melhor o caracteriza.

SOMBRAS DO PASSADO
Autor: Neil Jordan
Tradução: Lídia Luther
Editora: Geração Editorial
Quanto: R$ 45 (312 págs.)
Avaliação: bom

TRECHO

Sei exatamente quando morri. Foi às três e vinte da tarde do dia quatorze de janeiro do ano de mil novecentos e cinqüenta, em uma tarde clara e ensolarada incomum para a época, com um vento cortante que açoitava as nuvens brancas no céu azul acima de mim e formava no mar irlandês adiante mais do que sua porção normal de pequenas cristas brancas. George me matou com sua tesoura grande de jardinagem, a mesma que ele usava para cortar a hera que crescia desgovernada ao redor da casa em estilo Queen Anne e aparar a extensão de gramado, a cerca viva e o jardim [...]. Até o rio se beneficiava de um complemento de branco. Era um vento raro, que eu conhecia da infância vivida bem perto daquele rio, um vento que moldava as ondas em corredeiras de espuma branca, e naquele dia era por certo um vento raro.
Extraído de "Sombras do Passado", de Neil Jordan



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