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LIVROS
Bom livro de Jordan compensa má fase em longas
"Sombras do Passado" é o quarto romance do cineasta
irlandês Neil Jordan, mas o segundo lançado no Brasil
História se passa em um
vilarejo da Irlanda e traz
personagens com a mesma
riqueza vista nos melhores
filmes que Jordan já fez
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
Como cineasta, o irlandês Neil Jordan, 58,
não vive um bom momento. Seu 15º longa-metragem, "Valente" (2007), nem
mesmo foi lançado nos cinemas do Brasil: seguiu direto para DVD depois de ser exibido na
Mostra Internacional de São
Paulo. Ambientado em uma
Nova York sombria e violenta,
o filme (apenas dirigido por
Jordan, que não assina o roteiro) transforma uma radialista
(Jodie Foster) em versão anacrônica do personagem de
Charles Bronson em "Desejo
de Matar" (1974).
Como escritor, no entanto, as
notícias são bem melhores.
"Sombras do Passado" (2004),
seu quarto romance (apenas
um dos anteriores, "Linhas da
Noite", foi publicado no Brasil),
o traz de volta a um cenário
mais familiar e afetivo, um vilarejo da Irlanda, e a um modo de
caracterização de personagens
e cenários bem próximo da riqueza dos melhores filmes que
escreveu e dirigiu, como "Traídos pelo Desejo" (1992) e "Fim
de Caso" (1999), baseado em
romance de Graham Greene.
"Sei exatamente quando
morri", diz no início a primeira
(e principal) das vozes que se
entrelaçam na narrativa de
"Sombras do Passado", a de Nina Hardy, atriz de teatro e cinema. Como a frase sugere, ela
passa a contar sua história a
partir de um lugar em que a noção de tempo já não corresponde mais à nossa. Para ela, tudo
agora é presente. As circunstâncias de sua morte e a infância como filha única, no início
do século 20, em um casarão à
beira do rio Boyne, são igualmente vívidas.
Lendas e lirismo
Como um espírito onipresente disposto sobretudo a se
reencontrar com quem ela foi
para se compreender um pouco
melhor, Nina revisita esses momentos com uma intensa carga
de lirismo. Conhecemos seus
pais antes mesmo que se casassem, acompanhamos a mudança dos dois para uma região impregnada de lendas relacionadas a mulheres e à água.
Do outro lado do rio, vivia um
casal de irmãos pobres, Janie e
George, companheiros inseparáveis de Nina durante a infância e a adolescência. Um quarto
personagem se integrou mais
tarde ao grupo: Gregory, meio-irmão inglês de Nina, cuja existência a família desconhecia.
As relações entre os quatro
são iluminadas com mais força
a partir do momento em que a
narrativa alterna o ponto de
vista metafísico de Nina com os
de Janie e de Gregory. Sobreviventes amargurados da tragédia que resulta na morte de Nina, eles se voltam com nostalgia para os anos vividos juntos.
Triste balada
Enquanto cada um deles passa a compreender melhor os
sentimentos que moveram uns
em direção aos outros, o leitor
(e só ele) adquire compreensão
mais ampla do que realmente
estava em jogo, em quebra-cabeça que não se consegue montar até que a figura mais fascinante do romance, o brutamontes George, revele por relatos indiretos o que sustentava
sua lealdade canina aos demais,
e a Nina, em especial.
Nessa triste balada, a casa
onde ocorre a maior parte dos
eventos e o mítico rio Boyle são
também personagens, esculpidos em palavras com a lentidão
de quem se beneficia do que a
literatura oferece, em contraste com os imperativos mais urgentes da indústria cinematográfica atual.
Jordan mostra que seus filmes mais recentes podem não
ir bem, mas que a sua obra
prossegue na toada irlandesa
que melhor o caracteriza.
SOMBRAS DO PASSADO
Autor: Neil Jordan
Tradução: Lídia Luther
Editora: Geração Editorial
Quanto: R$ 45 (312 págs.)
Avaliação: bom
TRECHO
Sei exatamente quando
morri. Foi às três e vinte da
tarde do dia quatorze de
janeiro do ano de mil
novecentos e cinqüenta, em
uma tarde clara e ensolarada
incomum para a época, com
um vento cortante que
açoitava as nuvens brancas
no céu azul acima de mim e
formava no mar irlandês
adiante mais do que sua
porção normal de pequenas
cristas brancas. George me
matou com sua tesoura
grande de jardinagem, a
mesma que ele usava para
cortar a hera que crescia
desgovernada ao redor da
casa em estilo Queen Anne e
aparar a extensão de
gramado, a cerca viva e o
jardim [...]. Até o rio se
beneficiava de um
complemento de branco. Era
um vento raro, que eu
conhecia da infância vivida
bem perto daquele rio, um
vento que moldava as ondas
em corredeiras de espuma
branca, e naquele dia era por
certo um vento raro.
Extraído de "Sombras do Passado",
de Neil Jordan
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