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LIVROS
Filósofo escreve suas quase-memórias
Ruy Fausto publica "Os Piores Anos de Nossa Vida", um ajuste de contas com o passado em versos e pequenas prosas
Professor emérito da USP usa da relação com o pai imigrante aos conflitos na academia como matéria-prima para textos literários
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
"O título dramatiza um pouco", diz Ruy Fausto, 73, professor aposentado de filosofia da
USP e da Universidade de Paris
8, sobre o livrinho de poemas e
textos curtos em prosa que acaba de publicar: "Os Piores Anos
de Nossa Vida".
"Mas só um pouco", afirma a
seguir, na introdução às suas
memórias de filho de imigrante
-um pai narcisista, prático, comerciante de poucas letras, que
queria ver os filhos reconhecidos como "gênios". Perdeu a
mãe aos três anos. É um intelectual com talento reconhecido pelos seus pares, mesmo
aqueles muitos com que brigou
-ou que brigaram com ele. Mas
não chegou a atingir o posto
mais alto da carreira universitária -ele que teve duas, no
Brasil e na França.
"Os anos de universidade,
aos quais se refere um poema,
que empresta o título ao volume, estiveram de fato entre os
piores", escreve.
O pai tinha medo que ele
"morresse de fome". Recém-formado, conseguiu emprego
como professor da Faculdade
de Filosofia de Rio Claro, com
"salário de titular". "Isso é uma
mina", reagiu, exagerado, o pai.
"Outro é meu pai./ Simon
Brettschneider Fuss./ Ateu.
Bom comerciante./ Começou a
carreira roubando velas/ da sinagoga miserável da sua aldeia
natal./ Vendeu quadros nas
ruas de Buenos Aires,/ tocou
bois./ Trocou de nome para
Fausto porque lhe disseram/
que com aquele chouriço de nome/ nunca que haveria de vencer na vida./ Casou tarde e enviuvou cedo, roubou/ bastante
no peso e criou três filhos."
A mãe nasceu na Turquia.
Conheceu o pai em Rio Preto,
interior de São Paulo, onde Simon fez sociedade em negócios
da família da futura esposa. Os
filhos, diz Ruy, nunca souberam direito do que veio a morrer, depois de uma doença longa e complicada.
Morta, "tiraram as fotos da
mãe da casa toda". "Foi algo feito com boa intenção, mas desastroso. Nem se falava dela",
conta Ruy.
Arrumaram uma "governante" (assim, com "e") para o irmão caçula. O nome era Ia, filha
de italianos, analfabeta. "Quando o médico lhe disse, muitos
anos depois, que o seu coração
tinha disparado, e que não teria
muitas semanas de vida (na
realidade, sobreviveu mais de
um ano), despediu-se de cada
um com um aperto de mão, como se fosse para Limeira."
Na primeira tentativa de fazer seu doutorado, no início dos
anos 60, uma doença atrapalhou os planos de Ruy. Conseguira bolsa para estudar na
França. "Chegando lá, tive uma
infecção grave, que não foi bem
determinada. Passei 40 dias no
hospital. Acharam que eu pudesse ter câncer. Melhorei, mas
fiquei muito hipocondríaco."
Volta ao Brasil. Casamento. A
mulher, militante de esquerda,
passa a ser procurada pela polícia depois do AI-5. Ruy não militava. "Tinha muito medo. Fiquei medroso com a doença. É
possível que isso tenha salvado
a minha vida", diz. "Fugimos.
Ficamos de casa em casa. A última foi a do Antonio Candido."
Numa manhã, a mulher na
frente, Ruy sentado no banco
de trás, Candido dirigiu o próprio carro por um bom pedaço
de estrada -"até um pedágio"- para ajudar na fuga. Com
mais caronas, Ruy foi parar no
Uruguai, em companhia de outros intelectuais de esquerda.
Depois Chile, o golpe em 73, a
viagem até a Europa feita de
barco -"tinha medo de
avião"-, França de novo.
Utilidade marginal da vida
Ruy demorou a encontrar
trabalho como professor. Era
difícil "porque não tinha o doutoramento" -o título só viria
em 1981. "Tive que me virar. Já
tinha me informado sobre essa
história de virar porteiro", ele
conta. Os amigos brincavam:
"Vamos ver se o Ruy vai virar
mesmo proletário ou não".
"Por várias vezes na minha
vida eu fui pobre. Pobre com algum aluguel, que eu recebia do
Brasil. Isso nunca me desestabilizou. O que me desestabilizava era doença e esse negócio de
competição universitária."
No livrinho de Ruy, que é
mais fácil de ser encontrado em
www.fundacaoastrojildo.org.br do que nas livrarias,
há um personagem chamado
"sr. N", "o contador de meu
pai". Sr. N era "gordo, grande,
frustrado". Queixava-se sempre da vida: "a mulher que queria ver a ópera na televisão", "as
mazelas de saúde" e "o sentimento de não ter subido na vida". "Nunca passei de um medíocre contador."
Mas também aparece, como
título de um poema, o economista Léon Walras (1834-1910). Tendo como inspiração
esse outro "contador", escreve
Ruy: "Nunca entendi direito/
os neoclássicos./ Mas agora me
dou conta/ que aquele nosso
último beijo,/ que foi mesmo o
último,/ é que determina/ a
utilidade marginal/ deste nosso amor".
OS PIORES ANOS
DE NOSSA VIDA
Autor: Ruy Fausto
Editora: Fund. Astrojildo Pereira
Quanto: R$ 20 (68 págs.)
TRECHOS
>> O trem da Central pára três
minutos em Cruzeiro. O da
Sul-Mineira, dois minutos e
meio. É preciso descer
rapidamente. Para isso, fique
perto da plataforma. Cuidado
para não esquecer, no porta-bagagem, o chocolate amargo
Kopenhagen envolto em
papel de seda. Muita gente
esquece, no porta-bagagem, o
chocolate amargo envolto em
papel de seda. [...] Cuidado
para não descer antes de
Cruzeiro. Nem depois.
Conheço gente que desceu em
Pinda e subiu para Campos do
Jordão. Outro desembarcou
em Barra do Piraí e foi parar
em Belo Horizonte. A partir de
Pinda, não leia nada. Não olhe
a paisagem. Pense só na
baldeação. No trem da Sul-Mineira. Na baldeação de
Cruzeiro.
>> Quis rasgar o teu retrato/
como Você me mandou./ Mas
na hora de pô-lo no fogo/ Deus
me apareceu em sonho/ e
disse:/ "Esse é o teu filho
Isaac,/ mata antes um
cordeiro"./ Aqui te entrego o
retrato/ Para que dele faças/ O
que melhor te convier.
>> Quando o médico lhe disse,
muitos anos depois, que o seu
coração tinha disparado, e que
não teria muitas semanas de
vida (na realidade, sobreviveu
mais de um ano), despediu-se
de cada um com um aperto de
mão, como se fosse para
Limeira. Pediu desculpas a uns
e outros "porr arrguma coisa",
e marcou encontro para mais
tarde: "Nos vemo no céu, nos
vemo no céu, Deus tem lugá
prra todos".
Extraídos de "Os Piores Anos de Nossa
Vida",
de Ruy Fausto
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