São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2008

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LIVROS

Filósofo escreve suas quase-memórias

Ruy Fausto publica "Os Piores Anos de Nossa Vida", um ajuste de contas com o passado em versos e pequenas prosas

Professor emérito da USP usa da relação com o pai imigrante aos conflitos na academia como matéria-prima para textos literários


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"O título dramatiza um pouco", diz Ruy Fausto, 73, professor aposentado de filosofia da USP e da Universidade de Paris 8, sobre o livrinho de poemas e textos curtos em prosa que acaba de publicar: "Os Piores Anos de Nossa Vida". "Mas só um pouco", afirma a seguir, na introdução às suas memórias de filho de imigrante -um pai narcisista, prático, comerciante de poucas letras, que queria ver os filhos reconhecidos como "gênios". Perdeu a mãe aos três anos. É um intelectual com talento reconhecido pelos seus pares, mesmo aqueles muitos com que brigou -ou que brigaram com ele. Mas não chegou a atingir o posto mais alto da carreira universitária -ele que teve duas, no Brasil e na França. "Os anos de universidade, aos quais se refere um poema, que empresta o título ao volume, estiveram de fato entre os piores", escreve. O pai tinha medo que ele "morresse de fome". Recém-formado, conseguiu emprego como professor da Faculdade de Filosofia de Rio Claro, com "salário de titular". "Isso é uma mina", reagiu, exagerado, o pai. "Outro é meu pai./ Simon Brettschneider Fuss./ Ateu. Bom comerciante./ Começou a carreira roubando velas/ da sinagoga miserável da sua aldeia natal./ Vendeu quadros nas ruas de Buenos Aires,/ tocou bois./ Trocou de nome para Fausto porque lhe disseram/ que com aquele chouriço de nome/ nunca que haveria de vencer na vida./ Casou tarde e enviuvou cedo, roubou/ bastante no peso e criou três filhos." A mãe nasceu na Turquia. Conheceu o pai em Rio Preto, interior de São Paulo, onde Simon fez sociedade em negócios da família da futura esposa. Os filhos, diz Ruy, nunca souberam direito do que veio a morrer, depois de uma doença longa e complicada. Morta, "tiraram as fotos da mãe da casa toda". "Foi algo feito com boa intenção, mas desastroso. Nem se falava dela", conta Ruy. Arrumaram uma "governante" (assim, com "e") para o irmão caçula. O nome era Ia, filha de italianos, analfabeta. "Quando o médico lhe disse, muitos anos depois, que o seu coração tinha disparado, e que não teria muitas semanas de vida (na realidade, sobreviveu mais de um ano), despediu-se de cada um com um aperto de mão, como se fosse para Limeira." Na primeira tentativa de fazer seu doutorado, no início dos anos 60, uma doença atrapalhou os planos de Ruy. Conseguira bolsa para estudar na França. "Chegando lá, tive uma infecção grave, que não foi bem determinada. Passei 40 dias no hospital. Acharam que eu pudesse ter câncer. Melhorei, mas fiquei muito hipocondríaco." Volta ao Brasil. Casamento. A mulher, militante de esquerda, passa a ser procurada pela polícia depois do AI-5. Ruy não militava. "Tinha muito medo. Fiquei medroso com a doença. É possível que isso tenha salvado a minha vida", diz. "Fugimos. Ficamos de casa em casa. A última foi a do Antonio Candido." Numa manhã, a mulher na frente, Ruy sentado no banco de trás, Candido dirigiu o próprio carro por um bom pedaço de estrada -"até um pedágio"- para ajudar na fuga. Com mais caronas, Ruy foi parar no Uruguai, em companhia de outros intelectuais de esquerda. Depois Chile, o golpe em 73, a viagem até a Europa feita de barco -"tinha medo de avião"-, França de novo.

Utilidade marginal da vida
Ruy demorou a encontrar trabalho como professor. Era difícil "porque não tinha o doutoramento" -o título só viria em 1981. "Tive que me virar. Já tinha me informado sobre essa história de virar porteiro", ele conta. Os amigos brincavam: "Vamos ver se o Ruy vai virar mesmo proletário ou não". "Por várias vezes na minha vida eu fui pobre. Pobre com algum aluguel, que eu recebia do Brasil. Isso nunca me desestabilizou. O que me desestabilizava era doença e esse negócio de competição universitária." No livrinho de Ruy, que é mais fácil de ser encontrado em www.fundacaoastrojildo.org.br do que nas livrarias, há um personagem chamado "sr. N", "o contador de meu pai". Sr. N era "gordo, grande, frustrado". Queixava-se sempre da vida: "a mulher que queria ver a ópera na televisão", "as mazelas de saúde" e "o sentimento de não ter subido na vida". "Nunca passei de um medíocre contador." Mas também aparece, como título de um poema, o economista Léon Walras (1834-1910). Tendo como inspiração esse outro "contador", escreve Ruy: "Nunca entendi direito/ os neoclássicos./ Mas agora me dou conta/ que aquele nosso último beijo,/ que foi mesmo o último,/ é que determina/ a utilidade marginal/ deste nosso amor".

OS PIORES ANOS DE NOSSA VIDA
Autor: Ruy Fausto
Editora: Fund. Astrojildo Pereira
Quanto: R$ 20 (68 págs.)

TRECHOS

>> O trem da Central pára três minutos em Cruzeiro. O da Sul-Mineira, dois minutos e meio. É preciso descer rapidamente. Para isso, fique perto da plataforma. Cuidado para não esquecer, no porta-bagagem, o chocolate amargo Kopenhagen envolto em papel de seda. Muita gente esquece, no porta-bagagem, o chocolate amargo envolto em papel de seda. [...] Cuidado para não descer antes de Cruzeiro. Nem depois. Conheço gente que desceu em Pinda e subiu para Campos do Jordão. Outro desembarcou em Barra do Piraí e foi parar em Belo Horizonte. A partir de Pinda, não leia nada. Não olhe a paisagem. Pense só na baldeação. No trem da Sul-Mineira. Na baldeação de Cruzeiro.

>> Quis rasgar o teu retrato/ como Você me mandou./ Mas na hora de pô-lo no fogo/ Deus me apareceu em sonho/ e disse:/ "Esse é o teu filho Isaac,/ mata antes um cordeiro"./ Aqui te entrego o retrato/ Para que dele faças/ O que melhor te convier.

>> Quando o médico lhe disse, muitos anos depois, que o seu coração tinha disparado, e que não teria muitas semanas de vida (na realidade, sobreviveu mais de um ano), despediu-se de cada um com um aperto de mão, como se fosse para Limeira. Pediu desculpas a uns e outros "porr arrguma coisa", e marcou encontro para mais tarde: "Nos vemo no céu, nos vemo no céu, Deus tem lugá prra todos".

Extraídos de "Os Piores Anos de Nossa Vida", de Ruy Fausto



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