São Paulo, sexta-feira, 11 de novembro de 2005

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VIDAS SECAS

Marcelo Gomes estréia na direção com o premiado "Cinema, Aspirinas e Urubus" buscando fugir do regionalismo

"Não quero rótulos. O que faço é cinema"

Divulgação
Marcelo Gomes (à dir.) orienta João Miguel e Peter Ketnath no filme "Cinema, Aspirinas e Urubus"


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Um é alemão e deixou seu país para escapar da Segunda Guerra. O outro é sertanejo e quer viver longe da seca. É 1942.
O encontro desses desejos de mudança no Nordeste brasileiro é o que o cineasta pernambucano Marcelo Gomes narra em "Cinema, Aspirinas e Urubus", que estréia hoje em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Recife.
O filme mudou a vida de Gomes. Com "Cinema, Aspirinas e Urubus", o diretor, antes desconhecido, se tornou o primeiro brasileiro a vencer a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (ocorrida de 22/10 a 3/11) e um dos poucos no país a ganhar um prêmio no Festival de Cannes, em maio passado.
A seleção para a mostra Um Certo Olhar, de Cannes, "foi algo sem armação, sem construção", diz Gomes. "A gente simplesmente mandou a fita." O filme -primeiro longa na carreira de Gomes, que é autor de roteiros para outros cineastas e diretor de documentários para a TV- recebeu o Prêmio Educação Nacional na disputa, e Gomes ganhou a atenção da imprensa.
Até então, pouca gente sabia que, no início dos anos 90, Gomes havia deixado Pernambuco, onde não havia cursos de cinema, para estudar a arte na Inglaterra.
Voltou ao país somente na virada de 1993 para 1994, quando a produção brasileira afundava numa crise. Com Cláudio Assis ("Amarelo Manga") e Adelina Pontual, ele montou a produtora Parabólica Brasil.
"Um ajudava no curta do outro." Até que o Estado produziu seu longa "Baile Perfumado" (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, em que todos trabalharam de alguma forma. Estava lançada a onda do "árido movie", que abarca diversos outros nomes da região.
Mas hoje ninguém mais parece fazer questão de levantar a bandeira do "árido movie". Os cineastas adeptos do manifesto -por um cinema de poucos recursos e muitas idéias feito no Nordeste- descobriram que um rótulo pode ser aprisionante, simplificador, diminutivo.
Quando Gomes deixou Cannes com um prêmio debaixo do braço, um jornalista lhe perguntou se é cinema pernambucano o que ele faz. O diretor temeu pergunta e resposta. "Se disser que faço cinema pernambucano, vão me achar uma espécie uma tapioca de coco da Sé de Olinda, sabe? Não quero esse rótulo. O que faço é cinema."
Mas Gomes tampouco queria negar sua relação com o lugar onde nasceu. "Pernambuco está no meu sangue. A cultura pernambucana está em tudo o que eu faço. Meu primeiro curta se chama "Maracatu, Maracatus"."
O desafio que o diretor se impôs em "Cinema, Aspirinas e Urubus" não foi outro -tratar do Nordeste sem estereótipos.
O primeiro deles a ser evitado era o do nordestino "humilde, simples, que abaixa a cabeça, sofredor, que não tem opinião, não tem profundidade, não tem pensamento, não tem dor".
A imagem equivocada, segundo Marcelo Gomes, faz "parecer que o sertão é uma coisa muito simples" e que "quem está na caatinga não tem aflições".
Com base em relatos de seu avô paraibano e inspirado nele, Gomes escreveu o personagem do sertanejo Ranulpho (João Miguel, vencedor do prêmio de melhor ator na Mostra de SP).
É alguém "duro, seco como a paisagem", diz o diretor. O sertão de Ranulpho é também o sertão da memória de Gomes, cuja família vem do agreste. "Eu queria retratar o sertão aonde eu ia viajando com o meu pai e parecia haver silêncios espaciais -você viajava horas e não via ninguém. Tinha aquele sol que parecia que ia destruir suas pálpebras. E aquela lentidão, tudo ralentado, porque o calor é tão grande que as pessoas ficam mais lentas."
Para interpretar Ranulpho e Johann (Peter Ketnath), o alemão que vai parar no Nordeste vendendo aspirinas, Gomes quis atores que tivessem relação com os personagens. "Tinha de ser pessoas com uma memória afetiva em relação àquilo. Tinha de ser um alemão que viesse da Alemanha para o sertão. E tinha de ser um ator nordestino que já trouxesse o sotaque com ele."
Ao ler o roteiro do filme, com seu pano de fundo da Segunda Guerra, Ketnath se viu em algo mais do que o espanto de um europeu diante do sertão.
"Dei risada e chorei com o Johann. Minha família saiu muito machucada dessa guerra. Um dos meus avós era judeu. Teve de ir embora. Foi para a Inglaterra. Deixou os filhos, o casamento acabou. Só o vi uma vez na vida. O outro teve de lutar na guerra, depois foi preso na Rússia, voltou pobre e machucado demais."
O fato de Johann ser pacifista foi um atrativo a mais do personagem para Ketnath. "Em 1942, a maioria dos alemães achava que iria ganhar o mundo e matar os outros. Ele é pacifista. O filme mostra que essa realidade também era possível na época."
De sua parte, o ator baiano João Miguel viu no roteiro "um sertanejo não caricato" e gostou da idéia de dar corpo a ele na tela.
Itinerante por gosto e opção -viveu na Paraíba, trabalhando com o grupo Piolim, e hoje mora em São Paulo-, João Miguel se sente "um cara do mundo".
Mas se orgulha de que seu primeiro trabalho no cinema "fale da realidade contemporânea do Nordeste, mesmo sendo passado em 1942". "O diálogo com a realidade é indispensável. Estamos no Brasil. O importante é descobrir com que olhar você quer ver."
Certo. E "Cinema, Aspirinas e Urubus" enxerga longe.


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