São Paulo, sexta-feira, 11 de novembro de 2005

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"O SIGNO DO CAOS"

Último filme de Sganzerla luta contra o esquecimento

CRÍTICO DA FOLHA

Em "O Signo do Caos" existe, primeiro, o fato: em 1942, Orson Welles vem ao Brasil para filmar uma parte de seu projetado filme latino-americano. O governo brasileiro, também é verdade, não vê com bons olhos essa história de o gênio americano ficar filmando jangadeiros e Carnaval. Não é a boa "imagem do Brasil" (o Brasil é obcecado por sua boa imagem -como dizia Rogério Sganzerla, isso faz parte do nosso narcisismo: gostamos de ser vistos, mas não de ver).
Depois vem a obsessão. O determinante para o fim do projeto wellesiano foi, provavelmente, menos a interferência do governo Vargas do que o fato de Welles ter caído em desgraça na RKO, com a mudança de direção do estúdio.
Para Sganzerla (1946-2004), o que conta não é isso. Em sua visão, a coisa se passa assim: o Brasil impede Welles de filmar. Ao fazê-lo, o Brasil renuncia à imagem, à possibilidade de ter um cinema. Renunciar ao próprio cinema significa renunciar a constituir-se como civilização. Pois onde já se viu um país sem imagem? É como um vampiro, que não pode olhar no espelho, pois não há nada para refletir. É em torno disso que Sganzerla desenvolve seu último filme, amargo e bem-humorado.
O amargor, de onde vem? O cinema brasileiro moderno tem dois gênios: Glauber Rocha e Sganzerla. Sobre este sempre pesou a sombra da impossibilidade. Após um começo de carreira fulgurante, com "O Bandido da Luz Vermelha", é como se tudo tivesse conspirado contra: o Brasil, a burocracia cinematográfica, a elitização do cinema. Sganzerla parecia ter claro que o cinema só poderia ser, no Brasil, uma arte popular, como o rádio e a chanchada. O cinema foi para outro caminho: trocou o povo pela ambição de ser uma arte de classe média. E o Brasil ficou privado de imagem -no entender de Sganzerla (ou de como eu tento entendê-lo, em todo caso). Daí "O Signo..." se definir como um "antifilme".
Cheio de humor, também. O filme gira obsessivamente em torno do censor em vias de destruir os negativos de Welles. E na boca de Amnésio, o censor, o cineasta coloca seu fraseado agudo: "Quem quer ver uns crioulos dançando?" (Amnésio, sobre a insistência de Welles em filmar o Carnaval).
Em torno de Amnésio gravita a caricatura de uma elite (em linhas gerais, uma representação realista). Em torno de ambos, os encantos do Brasil, a que o cineasta se recusa a renunciar, e os boçais, acólitos, parasitas, a mediocridade submissa.
Mais do que amargo, talvez "O Signo..." seja um filme mordaz em sua crítica. Tomemos o nome: Amnésio. Porque o censor é o próprio esquecimento. E porque parece ser esse o personagem que sintetiza o Brasil (Sganzerla sempre esteve do lado da metonímia). Proibir, cortar, jogar no lixo, rejeitar -são todas formas de impedir o cinema de existir (pode-se interpretar a coisa paranoicamente, como se todo esse aparato existisse para impedir não Welles, mas Sganzerla de ser ouvido).
Contra esse impulso negativo do esquecimento, resta o filmar. E filmar lindamente. Pois esse antifilme que recusa as facilidades do que chamamos de comunicação se impõe, afinal, pela evidência e pela beleza de suas imagens.
(IA)

O Signo do Caos
    
Direção: Rogério Sganzerla
Produção: Brasil, 2003
Com: Djin Sganzerla, Otávio Terceiro
Quando: a partir de hoje no Frei Caneca Unibanco Arteplex e no Top Cine


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