São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2006

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Comentário

Um dia alguém relembrará as grandes memórias do pequeno Saramago

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Orhan Pamuk venceu o Nobel da Literatura no mês passado. Mérito artístico? Não duvido. Mas também não duvido que Pamuk venceu por motivos políticos: ao questionar publicamente um velho tabu nacional (o massacre de armênios e curdos às mãos de Istambul), Pamuk pisou o risco, ganhou o Jackpot.
Espantados? Não estejam. Basta consultar a lista dos Nobel nos últimos dez ou 20 anos para ficarem assombrados com a mediania dos escritores. Toni Morrison? Nadine Gordimer? José Saramago? Sim, os livros não convencem. Mas, em todos os casos, existe uma "política" que convence, e cada nome serve para Estocolmo preencher a cota respectiva.
Nadine Gordimer é mulher (e anti-apartheid). Morrison também (e negra). E, sobre Saramago, a história é conhecida: em 1992, um membro do governo português decidiu censurar Saramago, impedindo o livro do homem de concorrer a um prêmio europeu qualquer. O romance chamava-se "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" (penoso), e o governo entendia que a obra representava uma "blasfêmia" para um país majoritariamente católico.
A estupidez sempre foi um bálsamo para cabeças despertas, e Saramago, honra lhe seja feita, sempre foi uma. Em gesto magnânimo, o nosso José afirmou publicamente que não estava mais disposto a viver na sua pátria amada. Melhor o exílio no país ao lado, onde não era perseguido ou silenciado pelas autoridades oficiais. Não riam. A Academia Sueca gostou do número, e o Prêmio Nobel chegou logo a seguir.
O caso é interessante por dois motivos. Primeiro, porque se a idéia era "silenciar" Saramago, ele nunca mais parou de falar, dentro e fora de Portugal. E, depois, porque o episódio, obviamente indefensável, transporta um cheiro de ironia: censurar Saramago é como estripar Jack, o Estripador. Uma redundância.
Foi 1975. Portugal passara por uma revolução tranqüila a 25 de abril de 1974, mas rapidamente descera à loucura revolucionária das esquerdas, com prisões arbitrárias, ocupação de terras e uma "reforma agrária" que acabaria por liqüidar economicamente o país durante longos e bons anos.
Saramago era diretor-adjunto do "Diário de Notícias" e, nos meses quentes e em editoriais históricos (mas obviamente não publicados, e não publicáveis, nas "Obras Completas" do Nobel), o futuro "humanista" destilava crueldade e ódio contra os "reacionários" que se opunham à loucura reinante e não desejavam que Portugal seguisse o modelo soviético, ou cubano. Aliás, o "humanista" Saramago não apenas denunciava os traidores externos como não hesitava em sanear os internos, despedindo os "contra-revolucionários" do jornal que não aderiam à causa. Liberdade? Sem dúvida. Mas a liberdade tem uma cor e um partido.
E o partido é o Partido Comunista Português, uma relíquia stalinista, ainda viva (ou semiviva) no Parlamento lusitano, capaz de defender a "democracia" da Coréia do Norte e receber Fidel Castro com honras de estadista. Saramago é militante, ocasionalmente candidato (nas eleições européias, em lugar cuidadosamente não-elegível) e, como qualquer crente da seita, um amigo das últimas tiranias que ainda prendem ou fuzilam opositores. Desconheço opinião sobre a Coréia. Mas conheço a opinião sobre Cuba. É demasiado obscena para merecer uma linha de respeito.

Kafka e Borges
Nada disto invalida a arte de Saramago? Fato. Descontando a natureza convencional da narrativa; a evidente influência temática de Kafka e Borges; e a inspiração explícita dos pregadores portugueses na construção do tom estilístico e moral (não apenas António Vieira, mas os medievais, como Álvaro Pais e António de Lisboa), Saramago é um escritor interessante, oscilando entre livros notáveis ("O Ano da Morte de Ricardo Reis") e medíocres (sobretudo no pós-Nobel, "A Caverna" ou "Ensaio sobre a Lucidez").
Mas Saramago perde no resto. Primeiro, em termos literários, perde por comparação com os seus contemporâneos, como José Cardoso Pires ou Agustina Bessa-Luís. O primeiro acabaria por falecer em 1998, mal lido e pouco amado. A segunda, viva e ativa, é provavelmente a mais brilhante escritora portuguesa do século 20.
E, para acabar, Saramago perde na história política do nosso tempo. Não será caso único: Céline ou Sartre são provas biográficas de que o talento estético pode conviver com a aberração ética. Com ideologias inumanas que, no "grande altar das abstrações", exigiram dos seres humanos o sacrifício das próprias vidas.
Um dia alguém irá relembrar essa história e o papel do Nobel nela. Serão as grandes memórias de um pequeno Saramago.


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