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FERREIRA GULLAR
O sorriso de Nara
O especial de TV me
pegou de surpresa e, quando dei por mim, fazia uma dupla viagem
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ENTRE RECEOSO e comovido,
assisti ao especial que conta a
carreira e a vida de Nara Leão,
a Narinha que todos nós, seus amigos, amávamos.
Voltar ao passado me dói muito e,
por isso, sempre que posso, fujo dele. A biografia de Nara, escrita por
meu querido Sérgio Cabral, elogiada
por todos, guardo comigo mas ainda
não tenho coragem de lê-la. Ao ganhar o livro, o abri e logo o fechei, temendo mergulhar na aventura que
foram aqueles meses do show "Opinião", aqueles anos, envolvendo tanta gente querida, tanta coisa preciosa que se foi para sempre.
O especial de TV me pegou de surpresa e, quando dei por mim, fazia
uma dupla viagem, do passado ao
passado, já que o presente era ver o
perdido: o rosto dela, seu sorriso, sua
voz, e recuperá-lo, ao mesmo tempo,
uma vez que, paralelamente ao que a
televisão mostrava, outras cenas,
outras vozes se tornavam presentes
como numa tocata, em cuja tessitura melódica, notas e tempos se entrelaçam, emergem e somem, ali na
obscuridade do teatro, enquanto
Boal ensaiava as cenas do futuro espetáculo. E do fundo de sombras,
rindo, surge João do Vale, brincalhão. Zé Kéti cantarola para Nara:
"Podem me bater, podem me prender...". Vianinha está parado sob um
cone de luz, num dos cantos do palco. Em volta a escuridão da platéia
vazia. Vazia porque todos se foram
ou porque estão por vir? Estamos
antes ou depois do passado?
No shopping da rua Siqueira Campos, já faz tempo que não existe mais
aquele palco de arena com a platéia
em volta. Platéia feita de velhas cadeiras de um velho cinema, que ali
chegaram sujas de lama, que apodreciam ao relento. Todos nós nos
empenhamos, madrugada adentro,
a lavá-las para afinal, naquela noite
de dezembro de 1964, abrirmos nosso teatro ao público. Era uma vitória
e uma resposta, depois de tudo que
havíamos perdido com o incêndio
da UNE, a queima de nossos livros e
sonhos de mudar o Brasil. O antigo
auditório da UNE havia sido transformado num teatro, que inauguraríamos no dia 6 de abril se, cinco dias
antes, não o tivessem incendiado. O
show "Opinião" era nossa resposta,
na voz frágil daquela mocinha de
classe média que, como nós, redescobrira um sofrido Brasil, cantando:
"Mas eu não mudo de opinião".
Desse samba de Zé Kéti nasceu o
show, porque ele deu o nome ao disco de Nara, que tinha na capa uma
foto dela, de braço erguido, feita por
Jânio de Freitas. O disco, por sua
vez, nascera do Zicartola, um restaurante-casa de samba, surgido pouco
antes do golpe na rua da Carioca, se
bem me lembro, onde Nara se apaixonou pelo samba de morro. Mal o
disco saiu, veio o golpe. Ao ouvi-lo,
Vianinha teve a idéia de um show
musical que falasse dos problemas
do Brasil, reunindo um compositor
do morro, um compositor do sertão
e um cantora carioca, moradora da
avenida Atlântica.
O entusiasmo com o novo espetáculo só era ameaçado pelo temor da
polícia, já que nós, seus produtores,
éramos nada mais nada menos que o
CPC da UNE, odiado pelos golpistas
fardados e à paisana. Para enganá-los, pedimos emprestado o nome do
Teatro de Arena de São Paulo, que
apareceu como produtor do espetáculo, o que era corroborado pela
presença de Augusto Boal, como seu
diretor. Essa escolha foi providencial, não só por essa razão, mas também porque ele imprimiu ao show
qualidade essencialmente teatral.
Tudo isso, não nessa ordem e, sim,
na desordem da lembrança comovida, que mistura os fatos e violenta a
cronologia, tanto que, num relâmpago, releio, em Lima, a última carta
de Vianinha, exasperada pela revolta contra o câncer que inapelavelmente o matava. Mas, nesse momento mesmo, na tela da televisão,
Nara sorri docemente, agora-outrora, tal como naqueles dias, mirando-me com candura. Paulo Pontes, Armando Costa, João das Neves, Denoy discutem na pequena sala de
reuniões do teatro, quando Tereza
propõe fazer, às segundas-feiras, a
Fina Flor do Samba, um espetáculo
com compositores, passistas e ritmistas das escolas de samba.
A luz se apaga de repente, a cena, a
platéia, a cidade se desfazem na treva. Nara, rouca, mal consegue cantar, militares invadem meu apartamento, corro pelas ruas com uma
maleta que se abre e despeja roupas,
poemas, documentos subversivos.
Dobro uma esquina e estou em Moscou, depois em Buenos Aires e finalmente sou interrogado no DOI-Codi. Soltam-me altas horas da noite
na avenida Brasil. Soa o telefone,
é Nara que me diz: "O tumor sumiu
de meu cérebro, estou curada".
Minha vontade é abraçá-la, beijá-la,
mas como? Seu sorriso congela
na tela da TV.
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