São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 2008

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O arquiteto da imagem

Encenador provocador, Bob Wilson, 67, apresenta em SP vídeo-retratos sobre a vulnerabilidade e a passagem do tempo

Bob Wilson/Reprodução
Em vídeo-retrato, a atriz Winona Ryder interpreta Winnie, personagem de "Dias Felizes', peça de Samuel Beckett

LUCAS NEVES
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

O dramaturgo e artista Bob Wilson se apaixonou pela babysitter do amigo Tom Waits. Sua prova de amor, tempos depois, foi enterrá-la até o pescoço e filmar tudo em alta definição. A babá era a atriz Winona Ryder, que assim viveu Winnie, personagem de "Dias Felizes", do dramaturgo Samuel Beckett, num vídeo-retrato.
Ele também fotografou o ator Brad Pitt de cueca sob chuva artificial, a atriz Isabella Rossellini como uma Alice mais soturna do que a imaginada por Lewis Carroll e o ator Steve Buscemi em pose de açougueiro, com uma carcaça ensangüentada.
Esses vídeos quase sem movimento, fotos que tentam mostrar a passagem do tempo, chegam amanhã ao Sesc Pinheiros, em São Paulo. "Consegui atingir o mesmo grau de detalhe que busco no teatro", diz Wilson à Folha. "Dá para ver cada pêlo, cada poro."
Wilson, conhecido por suas montagens arrebatadoras, até então não havia trocado o palco pelo estúdio fotográfico, mas decidiu encarar a novidade por causa da tecnologia. "O vídeo agora se aproxima da fotografia. Antes, era impossível filmar o preto absoluto, o vermelho virava alaranjado", lembra.
De fato, as cores nos retratos beiram a estridência: o azul pluvial que envolve Brad Pitt, o rosa-choque dos cabelos de Winona Ryder, o escarlate da carne crua diante de Steve Buscemi. Em contraponto, o silêncio é absoluto. O autor não saiu à procura de texto nem música para acompanhar as imagens.
"Tem a ver com ouvir o silêncio", afirma Wilson, que importa dos palcos essa estratégia. "Meu trabalho no teatro sempre começa muito silencioso, só com imagens. Parto sempre do imobilismo, não tratando de idéias, mas de uma experiência momentânea, mais próxima do comportamento animal. Esses retratos são como olhar um urso selvagem e não se mexer, porque senão ele avança."
É o mesmo estado de suspensão e vulnerabilidade que marcou o teatro de Beckett. "Ele não era dramaturgo só de palavras, mas de imagens, que pensava em termos visuais", descreve Wilson. "Se você monta "Dias Felizes", vai muito além do texto, cria uma imagem: a de uma mulher imóvel, enterrada até o pescoço."
Não espanta que, no retrato de Wilson, seja Ryder a escolhida para o papel da vulnerável Winnie. Na condição de celebridade, sob o escrutínio permanente da mídia, a atriz também sentiu o peso do mundo.
Wilson, assim como Beckett, encara a gravidade da existência com economia verbal. Daí a paixão dos dois por atores do cinema mudo como Charlie Chaplin e Buster Keaton. "Foram os primeiros a desenvolver uma linguagem visual", afirma Wilson. "Os olhos deles eram coreografados."

Teatro de sensações
Em cena, a "dança" de Wilson segue uma lógica sensorial, não calcada em descrições lineares ou sentidos estanques. A dramaturgia fica em segundo plano, sucumbe à arquitetura: "Muito do que se vê no palco hoje entende a dimensão visual como mera decoração, quando o teatro deveria partir da arquitetura. O que vemos é tão importante quanto o que ouvimos, mas, na maioria dos casos, é o texto que guia a imagem."
Foi a partir da ópera "Einstein on the Beach" (1976), parceria com Philip Glass, que Wilson inscreveu de forma definitiva sua marca nas artes cênicas americanas: a abstração com eventuais arroubos megalômanos -a ópera não tinha enredo e durava cinco horas. Quatro anos antes, encenara "Ka Mountain and Guardenia Terrace" por sete dias, no topo de uma montanha iraniana.
A interpretação peculiar do apocalipse em "Death, Destruction and Detroit" (1979), no Schaubühne de Berlim, projetou seu nome na Europa. Na década seguinte, criou trabalhos para instituições de Paris, Salzburgo e Hamburgo. Acabou mais reconhecido do outro lado do Atlântico do que em casa.
"Na Europa, há uma tradição de ir ao teatro e ver não só trabalhos de seu país como também de fora. Nos EUA, estamos isolados. Meu trabalho é um teatro artístico, e não há espaço para isso aqui. O que temos é teatro de bulevar, para turistas, a título de entretenimento. Não há nada de errado com isso, mas é só o que temos", afirma.
Ainda que tenha flertado com o showbiz nos vídeo-retratos agora exibidos em São Paulo -a imagem de Pitt foi parar na capa da "Vanity Fair"-, Wilson reafirma sua inquietação criativa em projetos de contornos mais experimentais.
Ele acaba de voltar do Japão, onde filmou uma coreógrafa que perdeu os movimentos. Quase anônima no Ocidente, a personagem foge dos ideais de glamour para explicitar a tensão entre imobilismo e movimento, cara ao artista.


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