São Paulo, quarta, 11 de novembro de 1998

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Ali é pop


Três livros sobre o ex-lutador são lançados nos EUA e "A Luta', em que se baseou "Quando Éramos Reis', chega ao Brasil em dezembro


AMIR LABAKI
em São Paulo

Muhammad Ali é o herói da hora nos EUA. Você odeia boxe? Nenhum problema.O ex-campeão mundial dos pesos pesados há muito deixou para trás o status de ídolo esportivo. Antes de tudo, Ali hoje é pop.
Mais três livros acabam de ser dedicados a ele. Uma nova biografia nas telas está sendo preparada, com Will Smith ("Homens de Preto") vivendo Ali e Barry Sonenfeld atrás da câmera. O recente festival de cinema independente de Nova York citava-o na apresentação do catálogo.
Nelson Mandela, o presidente sul-africano, numa visita recente a Manhattan, disse que sonhava ter nascido Ali. Por sua vez, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, ao homenageá-lo no mês passado com o título de "Mensageiro da Paz", disse: "Pessoas como Muhammad transcendem fronteiras nacionais".
No campo esportivo, não tem para Pelé ou mesmo para Michael Jordan. Para muitos, nem se discute mais que Ali merece o título de atleta do século. Pelé foi o rei do futebol, um esporte ainda embrionário em Nova York, capital mundial do entretenimento. Jordan é a memória mais recente de um gênio na quadra, campo ou ringue, mas parece aprisionado pela imagem de megassucesso capitalista.
Muhammad Ali, 56, adicionou à fama de insuperável esteta do esporte a densidade dramática de sua tragédia médica. Ali sofre de Mal de Parkinson, uma doença degenerativa nervosa que compromete a movimentação muscular e a fala, mas não a consciência.
A nova ascensão do mito Ali coincidiu com a revelação mundial de sua doença, ao aparecer acendendo a pira olímpica em Atlanta-96. O ex-arisco bailarino dos ringues emocionou a todos ao claudicar para subir uma curta escada.
Um ano mais tarde, ei-lo repetindo a cena ao subir ao palco para celebrar o Oscar de melhor documentário para "Quando Éramos Reis", de Leon Gast, sobre a clássica luta de Ali contra George Foreman no Zaire, em 1974.
O belo filme de Gast, reconheça-se de pronto, deve muito ao poderoso relato de Norman Mailer sobre os bastidores daquele embate, "A Luta", que finalmente chega às livrarias brasileiras no próximo mês (Companhia das Letras).
Publicado originalmente em 1974, "A Luta" é um clássico do "novo jornalismo", a escola americana que tratou de converter reportagem em literatura de primeira. Tratando a si próprio na terceira pessoa, Mailer registra os bastidores do grande combate que devolveu o título que Ali, ao se recusar lutar no Vietnã, perdera fora dos ringues.
Se Mailer escolheu Ali x Foreman, o filósofo alemão Jan Philipp Reemtsma preferiu a violentíssima Ali x Joe Frasier, em Manila, 1975. Acaba de ganhar versão americana seu breve estudo "More than a Champion: The Style of Muhammad Ali".
Reemtsma descreve pacientemente a evolução do embate, alternando-a com análises curiosas da relação entre a trajetória de Ali e os cinco filmes da série "Rocky", com Sylvester Stallone. O estilo arrogante de Ali exemplificaria o cruzamento entre dois tipos psicológicos característicos deste século: o megalomaníaco e a personalidade dissociada.
O que Reemtsma esboçou David Remnick agora realiza: uma original releitura da vida de Ali a partir da luta contra um forte oponente. Recentemente catapultado a editor do semanário cult "The New Yorker", Remnick optou pelos dois combates entre o ainda Cassius Clay e Sonny Liston, em fevereiro de 1964 e maio de 1965, como ponto de partida para reconstituir a saga do boxeador.
"King of the World Muhammad Ali and the Raising of an American Hero" já é uma das raras unanimidades positivas nas resenhas do ano. Nenhuma surpresa. Remnick é talvez a grande revelação jornalística da década nos EUA. Levou um Pulitzer por sua cobertura para o "The Washington Post" sobre a queda do império soviético, reunida no livro "Lenin's Tomb".
"King of the World" é sua obra-prima. Ilumina tanto o passado quanto o presente de Ali como nem mesmo a biografia oral de Thomas Hauser ("Muhammad Ali His Life and Times", Touchstone Books, 1992) fizera antes.
Remnick examina sutilmente o caso Ali. Insere o fenômeno no quadro maior da luta pela afirmação negra nos EUA. O Ali de Remnick tem tanto a ver com boxeadores como Sonny Liston e George Foreman quanto com líderes como Malcolm X e Luther King.
Num dos achados do livro, Remnick classifica Ali como "o primeiro dos rappers", dado o frenesi de sua fala irreverente e o constante apelo à improvisação poética.
O livro recolhe inúmeros exemplos da poesia "aliana". Nenhum supera em contundência e concisão o quase hai-kai lembrado por George Plimpton no encerramento de "Quando Éramos Reis": "Me/We", algo que em tradução muito livre seria "Meu/Teu".
"King of the World" estrutura-se persuasivamente em torno das duas lutas entre Ali e Liston pelo título mundial. Há poucas dúvidas de que, depois de estourar nas Olimpíadas de Roma de 1960, foram elas que revelaram o boxeador maduro, de estilo ousado, braços provocativamente baixos, presença avassaladora e quase paradoxal velocidade de golpes e pernas.
A tese sustenta-se tanto esportiva quanto sociologicamente. A sagração do lutador coincide com a transformação de Cassius Clay, jovem negro de classe média do Kentucky, lutador desde os 12 anos, em Muhammad Ali, líder afro-americano convertido à causa muçulmana. Com Clay/Ali, o boxe tornou-se a política por outros meios.
Remnick nos traz ainda um raro flagrante do cotidiano atual de Ali. É duro ler o relato da convivência com a doença que praticamente caçou a palavra do antigo compulsivo falador. Mais difícil, porém, parece ser aceitar as dificuldades financeiras de um dos reis do entretenimento esportivo deste século. Ali vive hoje fundamentalmente da participação em festas e do autógrafo de lembranças do boxe.
"King of The World" trata da queda, mas concentra-se sobretudo na ascensão. O conjunto de sua trajetória é acompanhado de forma exemplar pela reunião dos principais textos e depoimentos escritos no calor da hora em "The Muhammad Ali Reader", organizado por Gerald Early.
Está tudo lá: entrevistas históricas de Ali, reportagens clássicas de autores como Tom Wolfe, Pete Hamill, Hunter S. Thompson e Gay Talese, até um poema do prêmio Nobel Wole Soyinka. Não hesite: fique com ambos.
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Livro: King of the World Muhammad Ali and the Rise of an American Hero Autor: David Remnick
Lançamento: Random House
Quanto: US$ 26 (326 págs.)

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Livro: The Muhammad Ali Reader
Organização: Gerard Early
Lançamento: The Ecco Press
Quanto: US$ 26 (300 págs.)


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Livro: More than a Champion: The Style of Muhammad Ali
Autor: Jam Philipp Reemtsma
Lançamento: Touchstone Books
Quanto: US$ 21 (192 págs.)


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Onde encomendar: www.amazon.com; www.barnesandnoble.com



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