São Paulo, quarta, 11 de novembro de 1998

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CINEMA
Com orçamento de R$ 300 mil, longa foi rodado na Paraíba e no Rio e traz no elenco Hamilton Vaz Pereira
Bressane faz milagre e acaba "São Jerônimo'

CARLOS ADRIANO
especial para a Folha

Para realizar seu cinema radicalmente pessoal, Julio Bressane sempre cometeu milagres. Prodígios de invenção e proezas de produção, conjugando estética exigente em verbas exíguas, poesia arrojada em prazo concentrado. Em seu novo filme, o milagre revela-se já no tema: são Jerônimo (330 - 410), grande e obscuro intelectual do Ocidente, autor da edição e da tradução completa da Bíblia, a chamada Vulgata.
"São Jerônimo" está em fase final de conclusão. Com orçamento de R$ 300 mil, locações no Rio (cenas de Roma) e na Paraíba (o deserto), o filme traz no elenco Everaldo Pontes (Jerônimo), Hamilton Vaz Pereira (papa Damaso), Bia Nunes, Silvia Buarque e Helena Ignez (mulheres aristocratas) e, na equipe, José Tadeu Ribeiro (fotografia) e Virgínia Flores (montagem).
As filmagens na Paraíba (um sítio a 600 km de João Pessoa) arrebataram o cineasta pelo impacto da natureza surreal, o tempo pré-histórico do lugar e a paisagem esculpida em pedras-cavernas cravadas de inscrições rupestres.
Há 11 anos Bressane se prepara para o filme. O que lhe interessa é "o signo Jerônimo", sobre o qual encena complexa operação criadora (para "desconstruir" o mito, primeiro deve-se apreender e, depois, desprender- se).
O diretor busca a luz de pinturas de Da Vinci e El Greco sobre Jerônimo. No tecido intertextual, isomórfico à escritura, convoca o Flaubert da "Tentação de Santo Antão", o Stroheim de "Ouro e Maldição" e o Pasolini de "Evangelho segundo São Mateus".
Um aspecto moderno traçado por ele é o do "novo modelo feminino". Jerônimo tornou-se orientador espiritual de mulheres aristocratas, criando, pela primeira vez no Ocidente, grupos de estudo para a decifração dos textos sagrados.
"Ancestral dos grandes humanistas", Jerônimo permaneceu 50 anos no que chamou "meu paraíso", o bibliogabinete no deserto de Belém. Antes, fez morada de martírio no deserto de Calcis, em Constantinopla (discípulo de um cenobita ascético) e em Roma (secretário do papa Damaso).
Bressane vê na Vulgata o primeiro livro experimental do Ocidente, "o Finnegans Wake do seu tempo" (joyceano avant-la-lettre, o monge intelectual criou 500 neologismos e injetou no latim laivos de grego e hebraico).
Ao transubstanciar a protolinguagem de Jerônimo e elevar a saga do código do conhecimento ao extremo, Bressane recorre ao plasma deleuziano dos "noosignos" e parece fazer de um filme um visionário manifesto civilizador para o nosso tempo.



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