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Livro reabre polêmica sobre edição do 'JN'
Folha Imagem
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Souza Cruz (à esq.), Armando Nogueira e Alice Maria, responsáveis pelo jornalismo da Globo em 89 |
Dez anos depois, a edição do debate entre Collor e Lula feita pela Globo volta a indispor seus responsáveis com a publicação de 'Notícias do Planalto'
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COLLOR E LULA NA GLOBO
Roberto Marinho avalizou edição coordenada por Alberico
FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local
Sexta-feira, 15 de dezembro de
1989, antevéspera do segundo turno da eleição presidencial, que
ocorreria no domingo, dia 17. O
"Jornal Nacional" tinha acabado
de ir ao ar, minutos antes, com a
edição do debate realizado na noite anterior entre os candidatos
Fernando Collor, do PRN, e Luiz
Inácio Lula da Silva, do PT. O telefone toca na redação do "JN". É
Roberto Marinho. Manda chamar o "responsável" pela edição
daquela noite. "Alô, Ronald, é Roberto Marinho. Esse é exatamente
o tom que eu quero na cobertura
política. A maneira como foi tratado o debate, é assim que eu quero." Despediu-se e desligou.
"Ronald" é Ronald Carvalho,
então editor de Política da Rede
Globo. É dele a transcrição aproximada, feita de memória, do que
lhe teria dito Roberto Marinho
naquela noite. A conversa é confirmada por outras duas pessoas.
"Entendi o telefonema do dr.
Roberto como uma instrução para o futuro, não como um elogio.
Ele não me perguntou "como
vai?", nada disso, foi direto ao assunto. Lembro-me do tom seco."
Ronald Carvalho foi um dos
responsáveis diretos, mas não o
único, nem o principal, como assumiu em entrevista à Folha, por
uma das edições mais controvertidas da história do "Jornal Nacional". Alberico Souza Cruz, na
época diretor de telejornais da
emissora, superior hierárquico de
Carvalho, participou diretamente
da confecção da reportagem que
foi ao ar, fato que nega até hoje.
O episódio gerou muita confusão na época, até uma manifestação de artistas em frente à Globo,
na véspera da eleição. Também
dentro da emissora, provocou um
racha entre os profissionais do
jornalismo. Seus ecos se fizeram
sentir meses depois, na queda de
Armando Nogueira, diretor da
Central Globo de Jornalismo, e na
ascensão de Alberico.
À véspera de completar dez
anos, a edição histórica voltou a
provocar discussões acaloradas
há duas semanas, quando foi lançado "Notícias do Planalto - A
Imprensa e Fernando Collor"
(Companhia das Letras), livro de
Mario Sergio Conti, ex-diretor de
Redação da revista "Veja". No
que se refere ao episódio do debate, tratado no capítulo 17, os envolvidos têm mais críticas do que
elogios ao relato de Conti, por razões várias.
Naquela mesma noite de 15 de
dezembro, Ronald Carvalho recebeu outros dois telefonemas, ainda na Redação do "JN". Um deles
de seu amigo pessoal Paulo Henrique Amorim, então editor de
Economia da Rede Globo.
"Ronald, o que aconteceu, como é que você fez aquilo? Não me
lembro exatamente das suas palavras, mas o teor era o seguinte: "Eu
fiz assim para mostrar que havia
sido um trabalho de tal forma
parcial que iria provocar a indignação das pessoas"."
Ronald Carvalho dá outra versão da conversa: "Não me lembro
exatamente o que falei ao Paulo
Henrique, mas não deve ter sido
isso, porque considero que a edição do "JN" refletiu de modo fiel a
vitória de Collor no debate".
Momentos depois, Carvalho fala ao telefone com o jornalista Ricardo Noblat, também seu amigo.
Carvalho afirma que foi Noblat
quem lhe telefonou; Noblat diz
que foi o contrário. Diretor de Redação do jornal "Correio Braziliense" há quatro anos, Noblat era
então articulista do "Jornal do
Brasil". Sua coluna, "Coisas da
Política", foi uma das que mais
atacaram a candidatura do PRN
durante a campanha. O titular foi
demitido do "JB" quatro dias depois que Collor se elegeu.
"Lembro-me de Ronald meio
cínico ao telefone", diz Noblat.
"Ele sabia que havia feito uma cagada, ligou para saber o que eu tinha achado da edição. Já sabia o
que iria ouvir de mim. Desde então, sempre que o assunto vem à
baila, Ronald assume a edição como uma coisa pessoal dele. É uma
falsa questão. Quem meteu a mão
na massa não tem muita importância. Eles estavam cumprindo
uma ordem do dono", diz Noblat.
Versões contraditórias
Entre as 141 pessoas que Mario
Sergio Conti ouviu para escrever
seu livro não está Ronald Carvalho. O autor diz que se considerou
"satisfeito" com o único depoimento de Carvalho sobre o episódio, publicado pela revista "Interview", em novembro de 93. Na reportagem, um perfil de Alberico
Souza Cruz, intitulado "O Dono
da Notícia", Carvalho sustentava
basicamente a mesma versão que
detalhou em três entrevistas à Folha. Seu núcleo está na tentativa
de eximir Alberico Souza Cruz de
responsabilidade na edição.
Segundo Carvalho, depois de o
"Hoje" ter ido ao ar, ele recebeu
um telefonema de Alice-Maria,
então diretora-executiva da Central Globo de Jornalismo, braço
direito de Armando Nogueira.
Diz Carvalho: "A Alice me disse
que tinha recebido um telefonema do João (João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo) e que ele havia
achado a edição do "Hoje" descompensada. Era o que eu tinha
achado. "Ronald, faça uma nova
edição", me pediu a Alice".
"Um dos editores que eu tinha",
segue Carvalho, "chamava-se
Otávio Tostes (era então editor de
Política do "JN'). Eu disse a ele:
"Assim como em futebol, quem
tem que bater o pênalti é o presidente, não se meta nisso. Eu não
quero que amanhã respingue para ninguém. Eu sou responsável
por essa merda". Dispensei o Otávio e fui pessoalmente para a ilha,
para editar sozinho. Marquei os
pontos em que o Lula perdeu, em
que o Collor ganhou e vice-versa.
Evidentemente, os pontos em que
o Collor ganhou foram muito
maiores. Editei com base nesse
critério. Em nenhum momento o
Alberico pisou na ilha de edição
ou na redação, ele nem sequer viu
a fita antes de ela ir ao ar."
A versão de Alberico é semelhante à de Carvalho. Foi relatada
à Folha em entrevista de duas horas, na sede da Rede TV!, onde Alberico exerce as funções de diretor de Jornalismo. Sem tirar os
óculos escuros em momento algum, Alberico não permitiu que a
conversa fosse gravada. "É que o
gravador me inibe", afirmou.
Eis sua versão do que se passou
naquele dia: "Estava em São Paulo
no dia 15. Cheguei à Globo por
volta de 16h. Fui para minha sala e
telefonei para o Ronald:
- Como está edição do debate
no "JN'? É a mesma do "Hoje'?
- Não, a Alice falou com o João
e ele disse que o dr. Roberto tinha
achado a edição errada, favorável
ao Lula, disse que não refletia o
debate e mandou mudar".
"O Daniel Tourinho (presidente
do PRN, cargo que ocupa até hoje)", prossegue Alberico, "estava
na minha ante-sala. A missão dele
era saber qual seria a edição do
debate e passar para o Collor. O
cara era um chato, um político
obscuro, e eu o cozinhei lá.
Ronald me liga às 19h.
- Como ficou?, perguntei.
- Já levei para a Alice e ela não
quis ver, disse que confiava em
mim, que estava bem-feito. Você
não quer dar uma olhada?
- Bota no ar."
Embora diga que não tenha visto a edição, Alberico afirma hoje
que a aprovaria integralmente:
"Ela exprimia o que ocorreu de fato no debate, a vitória do Collor".
Os dois relatos, o de Carvalho e o
de Alberico, muito próximos e
complementares, são desmentidos por todos os demais envolvidos no episódio. A começar por
João Roberto Marinho.
Em fax enviado à Folha, o vice-presidente das Organizações Globo afirma: "Não é verdade que eu
nem meu pai nem meu irmão tenhamos transmitido à Alice-Maria a orientação de mudar a edição do debate que foi ao ar no
"Hoje". Nenhum de nós viu antes a
edição do "Jornal Nacional". Mas
considero que ela ficou mais próxima de exprimir o que ocorreu
no debate da véspera. A edição do
"Hoje" passou a idéia de um equilíbrio entre os candidatos, o que
não houve. Na minha opinião, na
opinião de membros destacados
do PT e na pesquisa realizada pelo
Ibope, Collor teve melhor desempenho do que Lula no debate".
Ricardo Kotscho, atual diretor
de jornalismo da Rede Bandeirantes em São Paulo, na época assessor de imprensa de Lula, concorda que o petista foi derrotado
por Collor. "Já saímos todos do
debate com aquela sensação, mas
a edição da Globo adulterou o resultado da partida. Transformou
a vitória num massacre."
João Roberto Marinho, de qualquer forma, se confunde num
ponto, o da autoria da pesquisa. A
que foi ao ar no "JN" daquela noite era de responsabilidade do Vox
Populi. O instituto era contratado
por Collor desde o início da campanha. Um de seus sócios, Marcos
Antônio Coimbra, é primo torto
do ex-presidente; é dele, inclusive,
a autoria da sigla PRN. O pai de
Marcos Antônio, o embaixador
Marcos Coimbra, seria depois secretário-geral da Presidência de
Collor. Até aquele dia 15 de dezembro de 89, a Globo priorizava
as pesquisas de opinião do Ibope.
Houve uma decisão política na
emissora de incluir os números
do Vox Populi, muito favoráveis a
Collor.
Ainda assim, a versão de João
Roberto desautoriza o que dizem
Alberico e Carvalho. Há outras na
mesma linha. Alice-Maria, que
não fala sobre o episódio, aliás sobre nenhum assunto envolvendo
a Globo em público, diz, na reportagem de 93 da "Interview", uma
única frase, lacônica e por intermédio de terceiros: "A minha versão é a do Pinheirinho".
"Pinheirinho" é Francisco Vianey Pinheiro, ex-diretor regional
da Rede Globo em São Paulo. Na
reta final da campanha, ele fora
deslocado para o Rio, para coordenar, ao lado de Carvalho, o fechamento dos telejornais da casa.
É de Pinheiro a edição do debate
que foi ao ar no "Jornal Hoje".
"Logo depois de exibido o "Hoje", diz Pinheiro, "o Armando me
telefonou da sala dele, para me
parabenizar." "Falei com o João
Roberto", disse Armando, "ele
achou a edição equilibrada, muito
boa; por favor, repita no "JN". Fiquei aliviado, dei uma relaxada.
Lembro-me de que me dirigi ao
Otávio Tostes e disse: "Tigrão (era
assim, carinhosamente, que costumava se referir aos colegas), você vai coçar o saco; a questão do
debate está resolvida. É só acertar
algumas vinhetas, retocar a edição do "Hoje" e botar no "JN"."
Pinheiro teve um acesso de choro no estacionamento da Globo,
logo depois que assistiu à edição
do "JN". Quis bater em Ronald e
Alberico e foi contido. Afirma
que, "várias vezes durante a campanha", viu Alberico conversando ao telefone com Collor ou Leopoldo, seu irmão. "Era uma troca
de telefonemas permanente. O
Ronald era homem do Alberico,
nos momentos que antecederam
a eleição era difícil tê-lo à mão."
O relato de Armando Nogueira
segue na mesma linha. Reafirma o
telefonema que lhe deu João Roberto (que o empresário não confirma), a orientação que deu a Pinheiro e diz ter sido traído por Alberico. "O Alberico havia me dito
pelo telefone que faria pequenas
mudanças de forma. Qual não foi
minha surpresa quando vi no ar
aquela tragédia. O Alberico fez as
mudanças para servir a ele, aos interesses dele. Ele era um profissional a serviço da eleição do Collor,
não da Rede Globo", afirma.
Conhecimento técnico
Nesse cipoal de versões, há um
personagem-chave para que se
esclareça melhor o envolvimento
direto de Alberico no caso. É Otávio Tostes. Era ele quem operava
as reportagens sobre política nas
ilhas de edição. Tinha já então excelente conhecimento técnico do
maquinário, que Ronald Carvalho dominava com dificuldades.
Tostes, além de Alice-Maria, é o
único, entre os personagens de 89,
que trabalha atualmente na Globo. Deixou a emissora em 94 e
voltou para lá este ano, como
coordenador do "JN" em São
Paulo. Por determinação da direção da emissora, Tostes não pode
se pronunciar publicamente sobre o assunto. Procurado pela Folha, recusou-se a falar.
A reportagem ouviu, porém,
três de seus colegas na época, que
solicitaram o anonimato. A eles,
Tostes teria contado o que ouviu
de Carvalho, quando este teria recebido de Alberico a ordem de
mudar a edição para o "JN": "Prepare-se: vamos ter que tapar o nariz e botar a mão na merda".
Ainda segundo os colegas, Tostes lhes teria dito que foi ele, cumprindo ordens, quem de fato operou na ilha a edição. Teria recebido quatro orientações bem precisas, duas partidas de Ronald e
duas de Alberico, todas as quatro
para favorecer Collor. Isso tudo,
repita-se, na ilha de edição, onde
Alberico afirma não ter pisado.
Ainda segundo o relato de Tostes
para os colegas, Alberico foi o último a assistir à edição, 15 minutos
antes que a fita fosse ao ar.
Evidências
Embora nessa história vá haver
sempre alguém disposto a contestar suas muitas variantes, a versão
de que Alberico coordenou a edição a mando de Roberto Marinho, que teria atropelado a hierarquia, passando por cima da autoridade formal de Armando Nogueira, é a que soa mais lógica e
convincente. Mario Sergio Conti
escreve que, na tarde de 15 de dezembro, Roberto Marinho teria
mandado que Alberico fizesse "a
matéria correta" para o "JN". Dizer isso parece pouco. Os indícios
de que houve manobra política,
sem eufemismos, são vários:
* O telefonema de Marinho a
Ronald Carvalho, parabenizando-o pela edição e sinalizando os
rumos do telejornalismo.
* O fato de que Alberico determinou a todas as praças regionais
da Globo quais seriam os entrevistados dos "Bom Dia" locais no
dia 15, seguinte ao debate, e qual
seria a primeira pergunta que lhes
deveria ser feita. A história está insinuada no livro "Como Ganhar
uma Eleição", do consultor de
marketing político Ney Lima Figueiredo, colaborador da campanha de Collor, e foi confirmada à
Folha por dois jornalistas que trabalhavam na Globo em 89.
* O fato de que Roberto Marinho desautorizou, publicamente,
as declarações que José Bonifácio
de Oliveira Sobrinho, o Boni, deu
à Folha, no dia 17 de dezembro de
89. Boni disse que houve um "erro
de avaliação" por parte do jornalismo da emissora e que a edição
ficara "mais favorável a Collor".
Marinho disse no dia seguinte, à
mesma Folha: "Boni é o melhor
especialista em televisão do Brasil,
mas nunca o tive como especialista em questões eleitorais".
* Finalmente, o fato de que Roberto Marinho, contrariando os
filhos, que preferiam Evandro
Carlos de Andrade, então diretor
de Redação do jornal "O Globo",
nomeou Alberico para dirigir a
Central Globo de Jornalismo, em
90. Alberico, cuja amizade com
Collor já se tornara então notória,
ficou na função até 95. Carvalho
subiu junto e foi, até 93, quando
deixou a Globo, diretor editorial
de jornalismo da emissora.
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