São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


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Livro reabre polêmica sobre edição do 'JN'

Folha Imagem
Souza Cruz (à esq.), Armando Nogueira e Alice Maria, responsáveis pelo jornalismo da Globo em 89



Dez anos depois, a edição do debate entre Collor e Lula feita pela Globo volta a indispor seus responsáveis com a publicação de 'Notícias do Planalto'


COLLOR E LULA NA GLOBO
Roberto Marinho avalizou edição coordenada por Alberico


FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local

Sexta-feira, 15 de dezembro de 1989, antevéspera do segundo turno da eleição presidencial, que ocorreria no domingo, dia 17. O "Jornal Nacional" tinha acabado de ir ao ar, minutos antes, com a edição do debate realizado na noite anterior entre os candidatos Fernando Collor, do PRN, e Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. O telefone toca na redação do "JN". É Roberto Marinho. Manda chamar o "responsável" pela edição daquela noite. "Alô, Ronald, é Roberto Marinho. Esse é exatamente o tom que eu quero na cobertura política. A maneira como foi tratado o debate, é assim que eu quero." Despediu-se e desligou.
"Ronald" é Ronald Carvalho, então editor de Política da Rede Globo. É dele a transcrição aproximada, feita de memória, do que lhe teria dito Roberto Marinho naquela noite. A conversa é confirmada por outras duas pessoas.
"Entendi o telefonema do dr. Roberto como uma instrução para o futuro, não como um elogio. Ele não me perguntou "como vai?", nada disso, foi direto ao assunto. Lembro-me do tom seco."
Ronald Carvalho foi um dos responsáveis diretos, mas não o único, nem o principal, como assumiu em entrevista à Folha, por uma das edições mais controvertidas da história do "Jornal Nacional". Alberico Souza Cruz, na época diretor de telejornais da emissora, superior hierárquico de Carvalho, participou diretamente da confecção da reportagem que foi ao ar, fato que nega até hoje.
O episódio gerou muita confusão na época, até uma manifestação de artistas em frente à Globo, na véspera da eleição. Também dentro da emissora, provocou um racha entre os profissionais do jornalismo. Seus ecos se fizeram sentir meses depois, na queda de Armando Nogueira, diretor da Central Globo de Jornalismo, e na ascensão de Alberico.
À véspera de completar dez anos, a edição histórica voltou a provocar discussões acaloradas há duas semanas, quando foi lançado "Notícias do Planalto - A Imprensa e Fernando Collor" (Companhia das Letras), livro de Mario Sergio Conti, ex-diretor de Redação da revista "Veja". No que se refere ao episódio do debate, tratado no capítulo 17, os envolvidos têm mais críticas do que elogios ao relato de Conti, por razões várias.
Naquela mesma noite de 15 de dezembro, Ronald Carvalho recebeu outros dois telefonemas, ainda na Redação do "JN". Um deles de seu amigo pessoal Paulo Henrique Amorim, então editor de Economia da Rede Globo.
"Ronald, o que aconteceu, como é que você fez aquilo? Não me lembro exatamente das suas palavras, mas o teor era o seguinte: "Eu fiz assim para mostrar que havia sido um trabalho de tal forma parcial que iria provocar a indignação das pessoas"."
Ronald Carvalho dá outra versão da conversa: "Não me lembro exatamente o que falei ao Paulo Henrique, mas não deve ter sido isso, porque considero que a edição do "JN" refletiu de modo fiel a vitória de Collor no debate".
Momentos depois, Carvalho fala ao telefone com o jornalista Ricardo Noblat, também seu amigo. Carvalho afirma que foi Noblat quem lhe telefonou; Noblat diz que foi o contrário. Diretor de Redação do jornal "Correio Braziliense" há quatro anos, Noblat era então articulista do "Jornal do Brasil". Sua coluna, "Coisas da Política", foi uma das que mais atacaram a candidatura do PRN durante a campanha. O titular foi demitido do "JB" quatro dias depois que Collor se elegeu.
"Lembro-me de Ronald meio cínico ao telefone", diz Noblat. "Ele sabia que havia feito uma cagada, ligou para saber o que eu tinha achado da edição. Já sabia o que iria ouvir de mim. Desde então, sempre que o assunto vem à baila, Ronald assume a edição como uma coisa pessoal dele. É uma falsa questão. Quem meteu a mão na massa não tem muita importância. Eles estavam cumprindo uma ordem do dono", diz Noblat.

Versões contraditórias
Entre as 141 pessoas que Mario Sergio Conti ouviu para escrever seu livro não está Ronald Carvalho. O autor diz que se considerou "satisfeito" com o único depoimento de Carvalho sobre o episódio, publicado pela revista "Interview", em novembro de 93. Na reportagem, um perfil de Alberico Souza Cruz, intitulado "O Dono da Notícia", Carvalho sustentava basicamente a mesma versão que detalhou em três entrevistas à Folha. Seu núcleo está na tentativa de eximir Alberico Souza Cruz de responsabilidade na edição.
Segundo Carvalho, depois de o "Hoje" ter ido ao ar, ele recebeu um telefonema de Alice-Maria, então diretora-executiva da Central Globo de Jornalismo, braço direito de Armando Nogueira. Diz Carvalho: "A Alice me disse que tinha recebido um telefonema do João (João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo) e que ele havia achado a edição do "Hoje" descompensada. Era o que eu tinha achado. "Ronald, faça uma nova edição", me pediu a Alice".
"Um dos editores que eu tinha", segue Carvalho, "chamava-se Otávio Tostes (era então editor de Política do "JN'). Eu disse a ele: "Assim como em futebol, quem tem que bater o pênalti é o presidente, não se meta nisso. Eu não quero que amanhã respingue para ninguém. Eu sou responsável por essa merda". Dispensei o Otávio e fui pessoalmente para a ilha, para editar sozinho. Marquei os pontos em que o Lula perdeu, em que o Collor ganhou e vice-versa. Evidentemente, os pontos em que o Collor ganhou foram muito maiores. Editei com base nesse critério. Em nenhum momento o Alberico pisou na ilha de edição ou na redação, ele nem sequer viu a fita antes de ela ir ao ar."
A versão de Alberico é semelhante à de Carvalho. Foi relatada à Folha em entrevista de duas horas, na sede da Rede TV!, onde Alberico exerce as funções de diretor de Jornalismo. Sem tirar os óculos escuros em momento algum, Alberico não permitiu que a conversa fosse gravada. "É que o gravador me inibe", afirmou.
Eis sua versão do que se passou naquele dia: "Estava em São Paulo no dia 15. Cheguei à Globo por volta de 16h. Fui para minha sala e telefonei para o Ronald:
- Como está edição do debate no "JN'? É a mesma do "Hoje'?
- Não, a Alice falou com o João e ele disse que o dr. Roberto tinha achado a edição errada, favorável ao Lula, disse que não refletia o debate e mandou mudar".
"O Daniel Tourinho (presidente do PRN, cargo que ocupa até hoje)", prossegue Alberico, "estava na minha ante-sala. A missão dele era saber qual seria a edição do debate e passar para o Collor. O cara era um chato, um político obscuro, e eu o cozinhei lá.
Ronald me liga às 19h.
- Como ficou?, perguntei.
- Já levei para a Alice e ela não quis ver, disse que confiava em mim, que estava bem-feito. Você não quer dar uma olhada?
- Bota no ar."
Embora diga que não tenha visto a edição, Alberico afirma hoje que a aprovaria integralmente: "Ela exprimia o que ocorreu de fato no debate, a vitória do Collor". Os dois relatos, o de Carvalho e o de Alberico, muito próximos e complementares, são desmentidos por todos os demais envolvidos no episódio. A começar por João Roberto Marinho.
Em fax enviado à Folha, o vice-presidente das Organizações Globo afirma: "Não é verdade que eu nem meu pai nem meu irmão tenhamos transmitido à Alice-Maria a orientação de mudar a edição do debate que foi ao ar no "Hoje". Nenhum de nós viu antes a edição do "Jornal Nacional". Mas considero que ela ficou mais próxima de exprimir o que ocorreu no debate da véspera. A edição do "Hoje" passou a idéia de um equilíbrio entre os candidatos, o que não houve. Na minha opinião, na opinião de membros destacados do PT e na pesquisa realizada pelo Ibope, Collor teve melhor desempenho do que Lula no debate".
Ricardo Kotscho, atual diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes em São Paulo, na época assessor de imprensa de Lula, concorda que o petista foi derrotado por Collor. "Já saímos todos do debate com aquela sensação, mas a edição da Globo adulterou o resultado da partida. Transformou a vitória num massacre."
João Roberto Marinho, de qualquer forma, se confunde num ponto, o da autoria da pesquisa. A que foi ao ar no "JN" daquela noite era de responsabilidade do Vox Populi. O instituto era contratado por Collor desde o início da campanha. Um de seus sócios, Marcos Antônio Coimbra, é primo torto do ex-presidente; é dele, inclusive, a autoria da sigla PRN. O pai de Marcos Antônio, o embaixador Marcos Coimbra, seria depois secretário-geral da Presidência de Collor. Até aquele dia 15 de dezembro de 89, a Globo priorizava as pesquisas de opinião do Ibope. Houve uma decisão política na emissora de incluir os números do Vox Populi, muito favoráveis a Collor.
Ainda assim, a versão de João Roberto desautoriza o que dizem Alberico e Carvalho. Há outras na mesma linha. Alice-Maria, que não fala sobre o episódio, aliás sobre nenhum assunto envolvendo a Globo em público, diz, na reportagem de 93 da "Interview", uma única frase, lacônica e por intermédio de terceiros: "A minha versão é a do Pinheirinho".
"Pinheirinho" é Francisco Vianey Pinheiro, ex-diretor regional da Rede Globo em São Paulo. Na reta final da campanha, ele fora deslocado para o Rio, para coordenar, ao lado de Carvalho, o fechamento dos telejornais da casa. É de Pinheiro a edição do debate que foi ao ar no "Jornal Hoje".
"Logo depois de exibido o "Hoje", diz Pinheiro, "o Armando me telefonou da sala dele, para me parabenizar." "Falei com o João Roberto", disse Armando, "ele achou a edição equilibrada, muito boa; por favor, repita no "JN". Fiquei aliviado, dei uma relaxada. Lembro-me de que me dirigi ao Otávio Tostes e disse: "Tigrão (era assim, carinhosamente, que costumava se referir aos colegas), você vai coçar o saco; a questão do debate está resolvida. É só acertar algumas vinhetas, retocar a edição do "Hoje" e botar no "JN"."
Pinheiro teve um acesso de choro no estacionamento da Globo, logo depois que assistiu à edição do "JN". Quis bater em Ronald e Alberico e foi contido. Afirma que, "várias vezes durante a campanha", viu Alberico conversando ao telefone com Collor ou Leopoldo, seu irmão. "Era uma troca de telefonemas permanente. O Ronald era homem do Alberico, nos momentos que antecederam a eleição era difícil tê-lo à mão."
O relato de Armando Nogueira segue na mesma linha. Reafirma o telefonema que lhe deu João Roberto (que o empresário não confirma), a orientação que deu a Pinheiro e diz ter sido traído por Alberico. "O Alberico havia me dito pelo telefone que faria pequenas mudanças de forma. Qual não foi minha surpresa quando vi no ar aquela tragédia. O Alberico fez as mudanças para servir a ele, aos interesses dele. Ele era um profissional a serviço da eleição do Collor, não da Rede Globo", afirma.

Conhecimento técnico
Nesse cipoal de versões, há um personagem-chave para que se esclareça melhor o envolvimento direto de Alberico no caso. É Otávio Tostes. Era ele quem operava as reportagens sobre política nas ilhas de edição. Tinha já então excelente conhecimento técnico do maquinário, que Ronald Carvalho dominava com dificuldades. Tostes, além de Alice-Maria, é o único, entre os personagens de 89, que trabalha atualmente na Globo. Deixou a emissora em 94 e voltou para lá este ano, como coordenador do "JN" em São Paulo. Por determinação da direção da emissora, Tostes não pode se pronunciar publicamente sobre o assunto. Procurado pela Folha, recusou-se a falar.
A reportagem ouviu, porém, três de seus colegas na época, que solicitaram o anonimato. A eles, Tostes teria contado o que ouviu de Carvalho, quando este teria recebido de Alberico a ordem de mudar a edição para o "JN": "Prepare-se: vamos ter que tapar o nariz e botar a mão na merda".
Ainda segundo os colegas, Tostes lhes teria dito que foi ele, cumprindo ordens, quem de fato operou na ilha a edição. Teria recebido quatro orientações bem precisas, duas partidas de Ronald e duas de Alberico, todas as quatro para favorecer Collor. Isso tudo, repita-se, na ilha de edição, onde Alberico afirma não ter pisado. Ainda segundo o relato de Tostes para os colegas, Alberico foi o último a assistir à edição, 15 minutos antes que a fita fosse ao ar.

Evidências
Embora nessa história vá haver sempre alguém disposto a contestar suas muitas variantes, a versão de que Alberico coordenou a edição a mando de Roberto Marinho, que teria atropelado a hierarquia, passando por cima da autoridade formal de Armando Nogueira, é a que soa mais lógica e convincente. Mario Sergio Conti escreve que, na tarde de 15 de dezembro, Roberto Marinho teria mandado que Alberico fizesse "a matéria correta" para o "JN". Dizer isso parece pouco. Os indícios de que houve manobra política, sem eufemismos, são vários:
* O telefonema de Marinho a Ronald Carvalho, parabenizando-o pela edição e sinalizando os rumos do telejornalismo.
* O fato de que Alberico determinou a todas as praças regionais da Globo quais seriam os entrevistados dos "Bom Dia" locais no dia 15, seguinte ao debate, e qual seria a primeira pergunta que lhes deveria ser feita. A história está insinuada no livro "Como Ganhar uma Eleição", do consultor de marketing político Ney Lima Figueiredo, colaborador da campanha de Collor, e foi confirmada à Folha por dois jornalistas que trabalhavam na Globo em 89.
* O fato de que Roberto Marinho desautorizou, publicamente, as declarações que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, deu à Folha, no dia 17 de dezembro de 89. Boni disse que houve um "erro de avaliação" por parte do jornalismo da emissora e que a edição ficara "mais favorável a Collor". Marinho disse no dia seguinte, à mesma Folha: "Boni é o melhor especialista em televisão do Brasil, mas nunca o tive como especialista em questões eleitorais".
* Finalmente, o fato de que Roberto Marinho, contrariando os filhos, que preferiam Evandro Carlos de Andrade, então diretor de Redação do jornal "O Globo", nomeou Alberico para dirigir a Central Globo de Jornalismo, em 90. Alberico, cuja amizade com Collor já se tornara então notória, ficou na função até 95. Carvalho subiu junto e foi, até 93, quando deixou a Globo, diretor editorial de jornalismo da emissora.


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