São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 2000

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ARIANO SUASSUNA

Encantação de Guimarães Rosa



ALMANAQUE ARMORIAL Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna

ROSA, KAFKA E JOYCE

A qualidade de uma obra literária não tem nada a ver com as idéias certas ou erradas que seu autor sustente e que porventura nela apareçam, de modo implícito ou explícito.
Para ficar num só exemplo: Henri de Monthérlant não era um gênio, mas foi um dos escritores mais talentosos do século 20 francês. Era de extrema direita e, em seu culto da virilidade, olhava as mulheres com hostilidade e desconfiança.
Por isso, escrevendo sobre Inês de Castro, Monthérlant toma o partido dos fidalgos portugueses que a assassinaram por motivos políticos. Segundo pensava (e dizia), a amante do Príncipe Dom Pedro, enquanto viva, era uma ameaça para Portugal, e as "razões de Estado" deveriam, mesmo, levar o Rei a concordar com sua execução.
Apesar dessa idéia central, repugnante e cruel, tanto do ponto de vista moral quanto do político, artisticamente a peça A Rainha Morta, de Monthérlant, é a mais bela que já se escreveu sobre "a mísera e mesquinha", a que "depois de morta foi Rainha", para usar, sobre Inês, os versos de Camões.
Falo de um caso extremo para deixar claro, de uma vez por todas, que, ao discordar politicamente de João Guimarães Rosa, isso em nada afeta a admiração e amizade que me ligava a ele (que não era cruel nem insensível nem de extrema direita, e que, por outro lado, como escritor, situava-se léguas acima de Monthérlant).
Esclarecido assim este ponto, passo a transcrever o pequeno ensaio que escrevi quando Rosa morreu e que foi publicado no número 4 da revista Estudos Universitários, outubro/dezembro de 1967, no Recife:
"Entre os depoimentos prestados, no Conselho Federal de Cultura, em memória de João Guimarães Rosa, constaram os de Augusto Meyer, Afonso Arinos de Mello Franco, Adonias Filho, Octavio de Faria e Josué Montello. Este último afirmou que existem duas grandes linhagens de escritores, os lógicos e os mágicos. E, referindo-se ao depoimento de Octavio de Faria (que salientara a importância da palavra na obra de Guimarães Rosa), disse que essa mesma preocupação com os signos e palavras era de mágico. Era como se Guimarães Rosa fosse um Mago que, com o ingrediente das palavras, fazia as combinações da alquimia e das ciências ocultas.
"Aliás, e sem ter havido combinação prévia sobre isso, Augusto Meyer já se referira ao fato de que Guimarães Rosa -como Fausto, ou como Riobaldo, seu grande Personagem épico do Grande Sertão: Veredas- tinha realizado uma espécie de pacto com o Diabo, vendendo sua alma nos altares negros da forma e da palavra pura. Augusto Meyer fez uma distinção entre estilo -que ele definiu como alguma coisa de profundo e entranhado no sangue do homem- e forma, aparência exterior de um conteúdo. Tomou dois grandes escritores do século 20, Kafka e Joyce, para exprimir, segundo ele, as duas tendências dominantes da Literatura do nosso tempo. Seriam eles os mais expressivos das duas linhagens. Kafka, rico de significados, múltiplo, profundo, cheio de enigmas, mas tudo isso expresso numa linguagem clássica, sóbria, ordenada, racional, transparente, que parece acentuar ainda mais, por sua clareza diáfana, o enigma do conteúdo. Joyce, muito mais preocupado com as combinações de palavras e mesmo de sons, colocar-se-ia quase que num sentido contrário ao de Kafka.
"Seria talvez por causa de tal oposição que Joyce, numa forma "moderna e de vanguarda", recria o Mito tradicional de Ulisses; enquanto Kafka, também "moderno e de vanguarda" quanto ao conteúdo, se aproximaria, antes, quanto ao estilo, do tipo de escritor clássico.
"Depois de fazer essa distinção e de declarar lealmente sua preferência pela linhagem kafkiana, Augusto Meyer incluiu João Guimarães Rosa na linhagem joyciana da Literatura do século 20, afirmando então que as pessoas tinham uma certa tendência a não acreditar muito no que Rosa falava, um pouco por sua condição de diplomata, mas um pouco, também, pela preocupação talvez excessiva que ele tinha com sua "carreira" de escritor.
"Então Afonso Arinos, tomando a palavra, mostrou como essas preocupações de Rosa, ao contrário do que parecia, resultavam do fato de que ele acreditava demais em tudo. O grande escritor mineiro era incapaz de ceticismo, o que se deveria atribuir à sua condição de romancista: levando, como levava, tudo a sério, Rosa fazia com que nós não acreditássemos em alguns tópicos de sua crença, ao vê-la aplicada a coisas que as outras pessoas às vezes consideravam até grotescas. Lembrou a importância que ele dava, por exemplo, à sua posse na Academia Brasileira de Letras. Não se referia propriamente à Academia. Mas, como disse, Guimarães Rosa levava a sério até a liturgia das funções acadêmicas. E, aludindo às palavras de Augusto Meyer, disse que poderia haver quem considerasse o escritor mineiro até gongórico, por suas preocupações com a palavra e a forma. E acrescentou que isso não impediria o grande escritor dos campos gerais de Minas de se tornar, dentro de pouco tempo, um clássico da Literatura brasileira". Continua na próxima semana.


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