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MARCELO COELHO
Sobre a alegria de cantar "My Way"
Há várias coisas inquietantes em "Edifício Master", o documentário de Eduardo
Coutinho sobre um prédio em Copacabana onde moram cerca de
500 pessoas, encapsuladas em 276
apartamentos do tipo kitchenette.
Claustrofobia, evidentemente, é
uma das primeiras sensações que
o filme provoca. Com certa insistência, Eduardo Coutinho mostra
a própria equipe de filmagem se
espremendo no elevador ou nos
corredores do prédio antes de bater à porta de algum dos entrevistados.
Parece não haver muito espaço
para a movimentação de tantas
câmeras e refletores. E também
não há espaço para todas as histórias e todas as emoções que cada pessoa tem para apresentar no
breve depoimento, na aparição
sem retorno, no trecho de vida
que o documentário lhe concede.
Não é bem que o espectador
consiga "espiar", graças à câmera, aquilo que se passa dentro de
cada apartamento ou da alma de
cada morador. Não há em "Edifício Master" voyeurismo ou invasão de privacidade. É mais o movimento inverso: como se a câmera fosse uma janela que os entrevistados, muitas vezes levando
uma vida solitária e presos dentro
de si mesmos, pudessem abrir para respirar.
Um aspecto curioso do filme,
aliás, é que não se mostra nunca a
fachada do edifício; estamos sempre "dentro" dele -no máximo,
acompanhamos pelos monitores
dos guardas a chegada de visitantes na portaria, ou então vemos,
de uma janela, outras janelas de
outros apartamentos, num mundo sem horizontes, sem saída.
Impressiona como está presente, em diversos depoimentos, a
ameaça ou a tentação do suicídio:
depois de sofrer um assalto, uma
senhora abre a janela, pensa em
atirar-se. Desesperada com os
ciúmes do marido, uma outra
quase se jogou também.
Na primeira entrevista do filme,
ficamos conhecendo uma mulher
que morou a vida inteira no
"Master". Mudou inúmeras vezes
de apartamento, pulou de um andar para outro, mas nunca saiu
de lá. Ela conhece, claro, muitas
histórias do edifício. A equipe de
Eduardo Coutinho alugou um
apartamento no prédio. Pois bem
-a entrevistada hesita um pouco- nesse mesmo apartamento
já houve uma tragédia.
A depressão atinge brutalmente
uma jovem professora de inglês,
que se fecha o quanto pode entre
as paredes do apartamento. Outro morador, vítima de derrame,
é salvo da morte pelo vizinho. E
também há morte, simbólica ou
fictícia, no depoimento de um
ator aposentado, cuja carreira
terminou no momento em que filmavam um assassinato com tiros
de espoleta.
Mas o documentário de Eduardo Coutinho não é mórbido nem
deprimente. O que "Edifício Master" exerce sobre o espectador -e
esse ponto já foi ressaltado, creio,
por Inácio Araujo e Contardo Calligaris- talvez seja, antes de tudo, um efeito democratizante.
Podemos rir das esquisitices,
das fraquezas, até do rosto ou das
roupas deste ou daquele entrevistado; podemos nos comover com
algumas histórias, sentir pena de
muitos moradores, desdenhar de
suas crenças, idéias ou preocupações. Há várias cenas no filme que
não seria difícil classificar de patéticas, de pungentes, de ridículas.
Sim, tudo isso é verdade, mas funcionaria se estivéssemos vendo o
filme e seus personagens de um
ângulo externo, à distância, "de
fora".
Mas, no momento em que estamos dentro da sala de cinema
-ou melhor, "dentro" do edifício
Master-, cada entrevistado aparece para nós mostrando o que
tem de mais valioso, de mais importante, de mais vital. Em cada
depoimento, vibra, por assim dizer, uma convicção simples, sem
palavras, que é a convicção da
própria vida. Acima de todas as
estranhezas, diferenças, vergonhas que possamos sentir uns
com relação aos outros, é como se
uma dignidade intensa e intocável se irradiasse de cada pessoa,
quando esta se revela por inteiro.
É por isso, creio, que o clímax do
filme é o momento em que um
dos moradores, Henrique, canta
entusiasticamente o sucesso "My
Way" de Frank Sinatra, sublinhando a idéia de que cada um
vale pelo que é, do jeito que é. A
cena a princípio me pareceu constrangedora, mas... como fiquei
contente ao perceber que meu
constrangimento ia acabando
quanto mais alto o homem cantava! Deveríamos ter batido palmas
naquele momento.
O documentário de Eduardo
Coutinho parece ter concentrado,
em cada uma de suas cenas curtas, tal "coeficiente de verdade
humana" -graus tão altos de
temperatura e pressão existencial- que a gente sai do cinema
num estado que é simultaneamente de exaltação e de humildade; o filme é claustrofóbico e libertador ao mesmo tempo.
Talvez seja essencial à democracia a sensação de que, sendo
todos iguais, somos também totalmente diferentes uns dos outros. Sem dúvida, no edifício Master, estão em jogo não apenas diferenças individuais mas também
de condição social, de idade, de
educação.
O que há de "sociológico" no filme pareceu-me, contudo, acessório diante do que se destaca ali de
"humano". Talvez porque, bem
ou mal, o filme focalize a classe
média, o que sempre facilita a
identificação do espectador. Mas
há muitas classes médias naquele
mesmo barco, isto é, naquele mesmo prédio. De certa forma, o filme nos convence de que também
moramos nele -e de que só morrendo a gente muda de endereço.
Não sei se esta é uma conclusão
muito verdadeira a tirar de um
documentário; mas foi a minha.
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