São Paulo, sábado, 11 de dezembro de 2004

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LIVROS

CONTO

Vencedor do Portugal Telecom de Literatura lança "Paraísos Artificiais"

Henriques Britto recupera textos escritos nos anos 70

Felipe Varanda/Folha Imagem
O escritor Paulo Henriques Britto, ganhador do Prêmio Portugal Telecom de Literatura deste ano


DA SUCURSAL DO RIO

Paulo Henriques Britto, 53, é um obsessivo. A maior parte dos contos de "Paraísos Artificiais", que está lançando agora, foi escrita nos anos 70 e reescrita ao longo das últimas décadas. Por um feliz acaso (ao menos para a editora, a Companhia das Letras), o livro sai um mês depois de ele ser o vencedor (R$ 100 mil) do Prêmio Portugal Telecom de Literatura.
E é acaso mesmo, já que a editora lançaria "Paraísos Artificiais" de qualquer forma. Do autor, a Companhia das Letras já publicou os volumes de poemas "Trovar Claro" (1997) e "Macau" (2003) -o responsável pelo prêmio. E Britto é o número 1 da empresa na tradução de autores de língua inglesa (John Updike, Philip Roth, Ian McEwan...).
O empenho da editora foi importante para que ele aceitasse livrar os contos de sua obsessão de "reescritor". São apenas nove histórias em 128 páginas, formato que uma outra editora, nos anos 90, achou muito pequeno.
"Eles me pediram para escrever outros, mas eu disse que já tinha fechado meu botequim em ficção. Eu me sinto muito inseguro escrevendo ficção. Mas, depois que alguns dos contos foram publicados em revistas e bem recebidos, tomei coragem de lançar", conta.
"Paraísos Artificiais" é resultado de obsessão e, também, depuração. Britto diz ter escrito cerca de 30 contos durante o ano e meio (entre 1972 e 73) que passou em San Francisco, na Califórnia, estudando cinema. Quando relidos, mais tarde, quase todos foram jogados fora. Os restantes começaram a ser burilados.
Entre eles está "Uma Doença", em que o narrador passa todo o tempo deitado, analisando curvas, manchas, rachaduras e acidentes geográficos de paredes, tetos, chãos e até do seu lençol.
"Os contos mais antigos são de uma época em que eu lia muito [Samuel] Beckett [1906-1989]. "Uma Doença" é puro Beckett", diz Britto, classificando os primeiros textos do livro de "solipsistas", enquanto os finais são "mais convencionais".
A imobilidade tipicamente beckettiana aparece também no pequeno conto-título, que abre o livro. O narrador mostra a um suposto personagem que não há uma posição em que ele ficará duradouramente confortável, seja deitado, sentado ou em pé. Só há uma saída: "Sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel e começar a escrever".
A escrita como saída para a inércia se repete em "Uma Doença". Já em "Uma Visita", é a narração que se move de um personagem a outro, mas aquele que está na janela não reage. A janela (indiscreta e paranóica) também é o cenário de "Um Criminoso", em que um homem narra o que vê de maneira muito peculiar e exalta a imobilidade.
"Essa lealdade das coisas sem vida me enternece profundamente, dá quase vontade de chorar. A gente sempre pode confiar num escorredor ou num fogão de quatro bocas ou num pano de prato, eles são absolutamente incapazes de sacanear a gente. É mesmo um negócio comovente. O amor deve ser mais ou menos isso", diz ele no conto.
"O Primo" e "Coisa de Família" nasceram como esboços de romance nos anos 70, mas acabaram se transformando em contos. Em comum, eles têm personagens para quem a convivência é (ou está) nitidamente desconfortável, característica também de "O Companheiro de Quarto".
"Acho que isso perpassa todo o livro por causa da situação em que eu estava, morando sozinho num outro país", acredita Britto.
O único conto escrito no século 21 foi "Os Sonetos Negros", o último e maior do livro. A história se passa na fictícia São Dimas -cidade em que Britto situara oito contos nos anos 70, todos jogados no lixo por seu perfeccionismo-, para onde a jovem Tânia viaja para pesquisar a obra da poeta morta Matilde Fortes.
A narrativa é recheada de ironias à vida acadêmica, como a invenção de palavras pedantes e inúteis ("matildeana", "clitoricêntrica") e a euforia desencadeada pela suspeita de que a poeta poderia ter sido lésbica.
"O que me incomoda muito no meio acadêmico é a politização do fenômeno literário. Nada contra a correção política, mas por que ver os escritores como gays, negros, mulheres antes de vê-los como escritores? As pessoas importam discussões norte-americanas sem adaptá-las para cá", critica ele, professor de pós-graduação da PUC do Rio de Janeiro.
A falta de entrosamento com certos aspectos acadêmicos poderia ter-lhe custado a carreira de poeta. Ele diz que, quando começou a escrever versos, nos anos 70, não queria fazer nada do que era então hegemônico.
"Na época, o poema tinha de ser cabralino [relativo a João Cabral de Melo Neto], impessoal. E, para mim, a poesia sempre foi profundamente terapêutica, pessoal. E eu queria escrever em forma fixa, algo que ninguém fazia. Então eu pensei: "Nunca vou publicar poesia". Mas é incrível como as modas mudam. Hoje está todo mundo escrevendo em forma fixa", diz.
Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Chico Buarque e Caetano Veloso estão entre os "clássicos" de Britto, que brilhou em "Macau", unindo rigor e coloquialismo. (LFV)


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