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FERREIRA GULLAR
Um homem de moral
As pessoas são, em parte, seus
valores e, em parte, sua história, como se comportaram e se
comportam na prática da vida. E
pode se dar como certo que, quase
sem exceções, há distância entre o
que elas pensam, dizem e o que
fazem, já que é mais fácil imaginar e dizer do que realizar. Como
se sabe, a teoria, na prática, é diferente...
É verdade, porém, que, como as
pessoas não são iguais, em algumas delas a diferença entre o que
dizem e o que fazem é menor ou
maior. Pode-se dizer mesmo que
o esforço do indivíduo para agir o
mais coerentemente possível com
os seus valores é o que se pode definir como ética. O sujeito ético, a
meu ver, não é aquele que não se
sente tentado a cometer algum
deslize e, sim, aquele que, embora
tentado, não se permite cometê-lo, mantendo-se fiel a seus valores. Quem nunca se sente tentado
a errar não é ético, é santo. Aliás,
mais que santo, porque estes também estão sujeitos a tentações,
haja a vista santo Antônio.
Lembram-se de quanto Severino Cavalcanti, ao assumir a Presidência da Câmara dos Deputados, propôs dar aumento de salário aos deputados, inclusive a si
próprio? Quando alguns deputados declararam que eram contra
o aumento, ele disse com rara
franqueza: "São uns hipócritas.
Estão todos querendo o aumento,
mas fingem que não estão!". É
que Severino, destituído de toda
noção de ética, não compreendia
que desejar o aumento é normal,
mas inaceitável do ponto de vista
ético. A ética, muitas vezes, implica contrariar nossos desejos e necessidades. Hipocrisia é declarar-se contra o aumento publicamente e, nas encolhas, agir para consegui-lo.
José Diogo da Fonseca não era
deputado nem se metia em política; era gerente de uma pequena
empresa na qual entrara, jovem,
como contínuo e nela subira graças à sua dedicação ao trabalho e
a um curso noturno de contabilidade. Mostrou-se, desde o começo
de sua vida, um sujeito correto,
cumpridor de seus deveres.
No curso noturno, conheceu
uma moça, que se chamava Antonieta, com quem passou a namorar. Saíam juntos das aulas,
tarde da noite, e pegavam o mesmo ônibus. Certa ocasião, sugeriu
levá-la até a porta de casa e lá se
declarou. Antonieta topou sem
hesitar e, assim, aos domingos,
saíam juntos ou para ir ao cinema ou para passear e tomar sorvete. Depois que trocaram os primeiros beijos, Diogo, vendo que a
coisa ficava séria, disse a ela que
ia pedir-lhe a mão a seus pais. O
pedido foi feito e o casamento
marcado. Àquela altura, ele já
era uma espécie de subgerente e
tivera seu salário aumentado.
Mesmo assim, deixou para casar
quando houvesse comprado as
coisas essenciais para a casa, tudo
à vista, já que temia endividar-se
e não poder pagar em dia. A mesma cautela adotou com respeito
ao nascimento de filhos, que ficou
dependendo das condições econômicas da família.
A correção de José Diogo era reconhecida e louvada por todo
mundo, do patrão à própria Antonieta, que agradecia a Deus por
lhe ter dado por marido um homem tão correto.
Os filhos vieram e Diogo pôs em
sua educação o mesmo rigor que
adotara para si. Às vezes exagerava nas lições de moral, quando
então a esposa intervinha lembrando-lhe que os filhos ainda
eram crianças e tinham necessidade de alguma liberdade. Diogo
aliviava um pouco, mas logo voltava às exigências e a gerar conflito sobretudo com a filha mais velha, Betinha, que começava a flertar com os garotos da vizinhança.
- Namoro só aqui dentro de
casa e na minha presença, determinou ele, ao perceber que a filha
agora chegava em casa depois da
hora do jantar. Mas os dois filhos
também tinham que andar nos
trilhos, dizer para onde iam se
saíssem à noite. Fazia questão de
dizer-lhes que se não queria mal
para a sua filha, também não
queria para as filhas dos outros.
- Se está pensando em namorar a filha do Daniel, trate de falar com o pai dela.
- Não é namoro, é só uma
amiguinha.
Naturalmente, os filhos não levavam ao pé-da-letra as exigências do pai. Fingiam que obedeciam mas, quando ficavam a sós,
riam às gargalhadas dele.
- Caxias como o pai, não existe!
Pois bem, certo dia, para o espanto geral da família, descobriu-se que José Diogo tinha uma
amante. Foi uma amiga de Antonieta que o viu por acaso aos
amassos com uma mulher bem
mais jovem que ele, no carro, numa rua da Tijuca. Antonieta, primeiro, não acreditou mas, pelo
sim pelo não, foi averiguar e descobriu, no bolso do marido, uma
carta de amor de uma tal de Lucinha. Depois disso, animou-se a
aceitar os planos da amiga e o
surpreendeu na entrada dum
motel, na hora do almoço, com a
tal da namorada. Ele empalideceu, quase desmaia. Antonieta
voltou soluçando para casa.
Pego assim, em flagrante, José
Diogo adotou uma atitude inesperada: emudeceu. Que mais podia fazer? A mulher chorava e gritava:
- Por que você fez isto comigo,
hipócrita miserável!
Ele, mudo, olhava para um
ponto do soalho. E mudo ficou
dias, semanas, meses. Até que a
família decidiu levá-lo a um otorrinolaringologista.
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