São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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FERREIRA GULLAR

Um homem de moral

As pessoas são, em parte, seus valores e, em parte, sua história, como se comportaram e se comportam na prática da vida. E pode se dar como certo que, quase sem exceções, há distância entre o que elas pensam, dizem e o que fazem, já que é mais fácil imaginar e dizer do que realizar. Como se sabe, a teoria, na prática, é diferente...
É verdade, porém, que, como as pessoas não são iguais, em algumas delas a diferença entre o que dizem e o que fazem é menor ou maior. Pode-se dizer mesmo que o esforço do indivíduo para agir o mais coerentemente possível com os seus valores é o que se pode definir como ética. O sujeito ético, a meu ver, não é aquele que não se sente tentado a cometer algum deslize e, sim, aquele que, embora tentado, não se permite cometê-lo, mantendo-se fiel a seus valores. Quem nunca se sente tentado a errar não é ético, é santo. Aliás, mais que santo, porque estes também estão sujeitos a tentações, haja a vista santo Antônio.
Lembram-se de quanto Severino Cavalcanti, ao assumir a Presidência da Câmara dos Deputados, propôs dar aumento de salário aos deputados, inclusive a si próprio? Quando alguns deputados declararam que eram contra o aumento, ele disse com rara franqueza: "São uns hipócritas. Estão todos querendo o aumento, mas fingem que não estão!". É que Severino, destituído de toda noção de ética, não compreendia que desejar o aumento é normal, mas inaceitável do ponto de vista ético. A ética, muitas vezes, implica contrariar nossos desejos e necessidades. Hipocrisia é declarar-se contra o aumento publicamente e, nas encolhas, agir para consegui-lo.
José Diogo da Fonseca não era deputado nem se metia em política; era gerente de uma pequena empresa na qual entrara, jovem, como contínuo e nela subira graças à sua dedicação ao trabalho e a um curso noturno de contabilidade. Mostrou-se, desde o começo de sua vida, um sujeito correto, cumpridor de seus deveres.
No curso noturno, conheceu uma moça, que se chamava Antonieta, com quem passou a namorar. Saíam juntos das aulas, tarde da noite, e pegavam o mesmo ônibus. Certa ocasião, sugeriu levá-la até a porta de casa e lá se declarou. Antonieta topou sem hesitar e, assim, aos domingos, saíam juntos ou para ir ao cinema ou para passear e tomar sorvete. Depois que trocaram os primeiros beijos, Diogo, vendo que a coisa ficava séria, disse a ela que ia pedir-lhe a mão a seus pais. O pedido foi feito e o casamento marcado. Àquela altura, ele já era uma espécie de subgerente e tivera seu salário aumentado. Mesmo assim, deixou para casar quando houvesse comprado as coisas essenciais para a casa, tudo à vista, já que temia endividar-se e não poder pagar em dia. A mesma cautela adotou com respeito ao nascimento de filhos, que ficou dependendo das condições econômicas da família.
A correção de José Diogo era reconhecida e louvada por todo mundo, do patrão à própria Antonieta, que agradecia a Deus por lhe ter dado por marido um homem tão correto.
Os filhos vieram e Diogo pôs em sua educação o mesmo rigor que adotara para si. Às vezes exagerava nas lições de moral, quando então a esposa intervinha lembrando-lhe que os filhos ainda eram crianças e tinham necessidade de alguma liberdade. Diogo aliviava um pouco, mas logo voltava às exigências e a gerar conflito sobretudo com a filha mais velha, Betinha, que começava a flertar com os garotos da vizinhança.
- Namoro só aqui dentro de casa e na minha presença, determinou ele, ao perceber que a filha agora chegava em casa depois da hora do jantar. Mas os dois filhos também tinham que andar nos trilhos, dizer para onde iam se saíssem à noite. Fazia questão de dizer-lhes que se não queria mal para a sua filha, também não queria para as filhas dos outros.
- Se está pensando em namorar a filha do Daniel, trate de falar com o pai dela.
- Não é namoro, é só uma amiguinha.
Naturalmente, os filhos não levavam ao pé-da-letra as exigências do pai. Fingiam que obedeciam mas, quando ficavam a sós, riam às gargalhadas dele.
- Caxias como o pai, não existe!
Pois bem, certo dia, para o espanto geral da família, descobriu-se que José Diogo tinha uma amante. Foi uma amiga de Antonieta que o viu por acaso aos amassos com uma mulher bem mais jovem que ele, no carro, numa rua da Tijuca. Antonieta, primeiro, não acreditou mas, pelo sim pelo não, foi averiguar e descobriu, no bolso do marido, uma carta de amor de uma tal de Lucinha. Depois disso, animou-se a aceitar os planos da amiga e o surpreendeu na entrada dum motel, na hora do almoço, com a tal da namorada. Ele empalideceu, quase desmaia. Antonieta voltou soluçando para casa.
Pego assim, em flagrante, José Diogo adotou uma atitude inesperada: emudeceu. Que mais podia fazer? A mulher chorava e gritava:
- Por que você fez isto comigo, hipócrita miserável!
Ele, mudo, olhava para um ponto do soalho. E mudo ficou dias, semanas, meses. Até que a família decidiu levá-lo a um otorrinolaringologista.


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