São Paulo, quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

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NINA HORTA

O romantismo dos cardápios


Detesto abobrinha, de nascença, uma abobrinha responsável, então, deve ser um caso à parte

DOIS E-MAILS de convite na semana. Um, de umas moçoilas bonitas, que tenho encontrado muito em reuniões. São simpáticas, a fama é que cozinham muito bem, qualquer dia vou lá experimentar, mas quero morrer ou matar com o texto que elas usam para nos chamar.
Meninas, menos... Já estamos há tempos sobre duas pernas e vocês querem nos botar de quatro! Olhem só o romantismo do cardápio delas.
Escondidinhos de casca de banana da comunidade (como é que é isso, a comunidade come a banana e dá as cascas para vocês esconderem?).
Arroz integral, escarolas preservadas. Barrinha de cereais com geléia de capim (epa, é preciso me preparar muito para pastar, não é assim, deixando cair despretensiosamente o capim no e-mail é que vão me fisgar). Canapés de brotos conscientes sobre cama de folhas (não, não quero brotos conscientes, que morram dopados). Cascas de banana à parmigiana (sempre fico pensando em todas essas cascas que as nutricionistas querem que a gente coma. Eu como, se for bom, eu como, mas posso comer a banana também? A batata, a melancia, a beterraba? Como antes ou depois da casca? Se não como, para quem vão essas polpas? Sempre preferiria estar nesse extremo da recepção).
Miniabobrinhas responsáveis recheadas com brotos de bambu orgânico e verdes sustentáveis (detesto abobrinha, de nascença, uma abobrinha responsável, então, deve ser um caso à parte, uma freakona nerd, consciente do seu frescor e sustentabilidade, va-t'en Satan!). Tapioca de talo de agrião certificado (não que não goste de talo, como agrião com talo, quem não come? Mas talo de agrião certificado? Quem é certificado, o agrião ou o talo? Pelo amor de Deus, não me tirem o sabor da comida, encham minha sopa de cascas mas não me contem. E, se comermos tudo isso agora, o que vamos comer na guerra, na crise, na fome?).
Salada colorida com vinagrete de talos, musse de casca de abacaxi (eu me retrato, sim, meninas, prometo.
No dia que comer musse de casca de abacaxi e gostar, eu me retrato. Deve ser melhor que musse, que já é uma consistência que não gosto, feita com a própria fruta. A casca deve dar um tchan áspero, talvez melhore aquele nham-nham da musse, mas...). Lasanha verde com passeata de legumes (passeata, de que jeito, tipo panelão, com banners, legumes nus ou topless contra a química? Interessante).
Outra vez, no menu, tapioca de talos de agrião certificados (eles vêm com o certificado amarrado na perninha?). Salpicão biodiverso de cascas e cores. FarofEco (até a farofa, pecado. Rimem farofa com frigideira, efes fricativos, frisada, frita, fritada, frugal, fúlvida, fundamental, fundadora, mas farofeco, que degradação substantiva!).
No outro e-mail, fui convidada para uma feijoada, feijoada e só, aniversário de feijoada, que é a única coisa que pode desbancar um pouco a aniversariante. Você recebe o convite e, antes de saber se pode ir ou não, já começa a salivar um pouco, repetir a palavra no inconsciente.
Feijoada, sábado tem feijoada, e como Dom Ratão já sente os eflúvios da panela de feijão, enxerga a feijoada, profunda, lúgubre, o paio, a lingüiça, quiçá o rabo, a costela, talvez a orelhinha, barroca, feijoada, barroca, exagerada, feijoada.
Posso afiançar que a couve não era certificada, nem a farinha sustentável, nem o rabo consciente, nem a caipirinha orgânica. Até poderiam ser, mas não tinham esse discurso que mata a vontade de comer. Era simplesmente uma feijoada, um monte de felicidade calma, um negro prazer amalgamado com pimenta e farofeco.

ninahorta@uol.com.br


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