São Paulo, sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

O cônsul e o bigode


A pessoa grada é mulher bonita. Não precisa pagar o vexame plebeu de esperar no guichê


O FUNCIONÁRIO do consulado argentino mete a cara no guichê:
-Que deseja?
-Vim apanhar meu visto.
Avança nome e número do passaporte. O funcionário vai à mesa do cônsul e examina uns papéis.
-Está aqui. Só falta agora o senhor cônsul assinar.
O senhor cônsul está ao telefone, falando e gesticulando em espanhol. Reclama uns vinhos que encomendara para o Natal e não chegaram a tempo. Gasta nisso uns 20 minutos, a parte contrária recalcitra, mandou, não mandou, e o cônsul quase manda a outra parte àquela parte.
Depois disso, volta à mesa e bota os óculos que traz pendurados no pescoço por um elástico. Vai apanhar o passaporte para examiná-lo, mas aí chega uma pessoa grada.
A pessoa grada é mulher bonita, por isso, além de grada, agradável. Não precisa pagar o vexame plebeu de esperar no guichê. Vai diretamente à mesa do cônsul, senta-se e cruza um par de pernas igualmente grado e agradável.
O camarada quer protestar pela preterição, mas, à vista dos belos joelhos da pessoa grada e recém-chegada, fica de boca calada e prepara-se interiormente para apreciar com calma o espetáculo. E aprecia até que os joelhos são ocultos pela saia que cai verticalmente, a pessoa grada põe-se de pé e despede-se cheia de papéis selados e recomendações de especial tratamento para o especial par de pernas que possui, e que, nesta altura do campeonato, deve pervagar plagas portenhas.
O senhor cônsul mete novamente os óculos e não se agrada ao dar com a cara imóvel e persistente do camarada que está no guichê esperando que aquele Moisés de óculos lhe traga as tábuas da lei.
-Que desea usted?
-Estou esperando pelo visto. Falta só o senhor assinar.
-Un momentito.
No mesmo momentito, toca outra vez o telefone. Dessa vez, não se trata de vinhos não chegados nem de chegadas pessoas gradas. É apenas pessoa chegada ao coração do cônsul, o qual sussurra, "al teléfono", todas as letras de tango sabidas e improvisadas na hora e circunstância.
Após muitas juras de "amor para todo el siempre" e "besos locos en su boquita heticera", o cônsul tira os óculos do nariz e olha com desagrado para o guichê. Não aprecia a cara imóvel e persistente que o espia.
Lembra, afinal, que é pago pela nobre nação irmã para, além de encomendar vinhos e juras de amor eterno às belas mulheres do país irmão, visar também passaportes de homens feios e importunos como o camarada que parece sólido no guichê, inarredável.
Apanha o papel timbrado que está à frente, com foto e cheias de carimbos. A primeira coisa que faz é botar o papel de cabeça para baixo. Começa a ler, de olhos esbugalhados. O texto redigido e impresso pelo próprio consulado parece-lhe idioma búlgaro ou servo-croata. Não entende nada, mas vai assim até o fim.
Lá embaixo, dá com as armas de sua nobre pátria e só então nota que o papel está ao contrário. O escudo argentino tem um sol cheio de raios, e é o sol de cabeça para baixo que espanta o cônsul. Endireita a posição do documento e tudo lhe parece claro, menos a foto. Sacode o passaporte no ar:
-Es suyo?
-É.
-E donde está el bigode?
-Que bigode?
-El suyo.
-Ué! Na minha cara!
Passa a mão pelo rosto para se certificar do vasto bigode que lhe dá ares de guerrilheiro latino-americano ou traficante boliviano de cocaína. Lembra-se então que a foto é razoavelmente antiga, do tempo em que amara certa dama que detestava bigodes. Mas o cônsul não é dama nem tem nada contra ou a favor dos bigodes. É a favor da lei, e o camarada não pode receber visto nenhum. Ou tirava o bigode da cara ou tirava foto com bigode. Do contrário, não entraria no país dos pampas e de Carlos Gardel.
O cônsul faz ainda uma sábia dissertação sobre os deveres específicos de seu cargo, não podia transigir.
-Bom, se é assim, não vou mais para a Argentina.
-No perdemos nada con esto!
O camarada então toma uma resolução e um trem para Miguel Pereira, onde vai gozar as férias com seu bigode impune.
PS. Esta crônica é uma ficção antiga, não atenta contra a eficiência de nenhum membro do corpo consular, especialmente da Argentina onde tudo nos une e nada nos separa.


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