São Paulo, sexta, 11 de dezembro de 1998

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POLÊMICA
Professor de literatura diz que subtítulo de seu novo livro, "A Invenção do Humano", foi mal compreendido
Bloom, Shakespeare e a provocação

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha No início de novembro, as livrarias norte-americanas já tinham sido invadidas por pilhas de um tijolo de 745 páginas com um título no mínimo provocativo, para não dizer de prováveis intenções mercadológicas: "Shakespeare - A Invenção do Humano" (no Brasil, o lançamento está previsto para o ano 2000, pela Objetiva).
Não foram poucos (a maioria dos resenhistas) os que viram naquilo mais uma provocação de Harold Bloom, 68, autor do clássico "A Angústia da Influência" e, mais recentemente, dos polêmicos "O Livro de J", em que atribui a autoria da Bíblia a uma mulher, e "O Cânone Ocidental".
Na verdade, toda a eventual provocação se resume ao subtítulo ("A Invenção do Humano"), que o autor, após as críticas, insiste em dizer que nada tem de teórico, mas deve ser lido apenas como uma metáfora, uma licença poética.
A bem dizer, a tese controversa da "invenção do humano" também pouco tem a ver com o próprio livro, cuja essência é constituída pelos comentários que o autor faz de peça por peça, na melhor tradição interpretativa inglesa -Bloom reivindica a linhagem direta do crítico romântico inglês Samuel Johnson, ou Dr. Johnson (1709-84). A provocação da "tese" fica confinada, portanto, ao prefácio e à conclusão. Bloom falou à Folha, de Nova York, por telefone. Disse estar particularmente suscetível devido aos ataques -infundados, equivocados ou ressentidos, para ele- que vem sofrendo:
Folha - O sr. diz que seu livro é uma leitura shakesperiana dos personagens das peças de Shakespeare. O que é uma leitura shakesperiana de Shakespeare?
Harold Bloom -
É uma leitura que evita toda ideologia atual. Não é feminista. Nem marxista. Nem historicista, à maneira de Foucault. Nem teórica, segundo uma ou outra facção parisiense. É uma leitura à Samuel Johnson, William Hazlitt ou A.C. Bradley, por meio da comparação dos personagens entre si. Falstaff à luz de Hamlet. Hamlet à luz do Rei Lear. O Rei Lear à luz de Cleópatra. Shakespeare é o maior inventor, não só de personagens morais, mas da personalidade humana em toda a história da literatura ocidental e talvez universal. Baseado nisso, uso Shakespeare para ler Shakespeare.
Folha - Seria possível dizer que o que o sr. elogia como "a invenção do humano" é na realidade a invenção do realismo psicológico?
Bloom -
Pode ser, mas isso é uma parte. Em termos da mimese do que pode ser chamado de realismo psicológico, Shakespeare foi um grande pioneiro, com Chaucer como precursor. Mas ele é mais que a mimese do realismo psicológico. É um vasto inventor da personalidade humana, incluindo a sua e a minha. Seríamos muito diferentes, e menos interessantes, se Shakespeare nunca tivesse escrito.
Nas obras de contemporâneos de Shakespeare, como Marlowe, os personagens soam como cartuns, todos são Christopher Marlowe. Todos os personagens de Ben Jonson são a favor de Ben Jonson ou contra Ben Jonson. São ideogramas falando com a mesma voz.
Não sabemos qual era a voz de Shakespeare -seus personagens falam por meio de 600 vozes.



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