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DRAUZIO VARELLA
Prazer compulsivo
Para o cérebro, toda recompensa é bem-vinda, venha
ela de uma droga ilícita ou da experiência vivida. Sempre que os neurônios dos centros encarregados de reconhecer recompensas são estimulados repetidamente
por substâncias químicas ou vivências que confiram sensação de
prazer, existe risco de um cérebro
vulnerável ficar dependente delas
e desenvolver uma compulsão.
Por isso tanta gente bebe, fuma,
cheira cocaína, perde casa em jogo de baralho, come demais, faz sexo sem parar, compra o que não
pode pagar e levanta peso compulsivamente nas academias.
A palavra dependência vem
sempre associada às drogas químicas, ao desespero do dependente para consegui-las, ao aumento
da tolerância às doses crescentes e
à crise de abstinência provocada
pela ausência delas na circulação.
A tríade compulsão-tolerância-abstinência, no entanto, não é
obrigatória mesmo no caso de
substâncias dotadas de alto poder
de adição.
A cocaína, por exemplo, droga
de uso altamente compulsivo,
causa síndromes de abstinência
relativamente discretas, desde
que o usuário não entre em contato com a droga ou com alguém
sob o efeito dela. Apesar de causar
dependência, a maconha muitas
vezes é consumida esporadicamente, sem que o usuário apresente crises de abstinência dignas
de nota. Doentes que tomam
morfina para combater dores fortes, em menos de 3% dos casos,
desenvolvem obsessão pelo medicamento quando as dores param.
Toda vez que o cérebro é submetido a estímulos repetitivos
carregados de conteúdo emocional, os circuitos de neurônios envolvidos em sua condução se modificam para tentar perpetuar a
sensação de prazer obtida.
Esse mecanismo, conhecido como neuroadaptação, é arcaico.
Quando a abelha penetra uma
flor e sente o prazer de encontrar
o alimento desejado, é liberado,
em seu cérebro, um neurotransmissor chamado octopamina.
Quando um adolescente fuma
maconha ou cheira cocaína, ocorre, nas terminações nervosas de
certas áreas cerebrais, aumento
na concentração de dopamina. A
semelhança de nomes entre ambos os neurotransmissores traduz
a proximidade da estrutura química existente entre as duas moléculas. Apesar de as abelhas terem divergido da linhagem que
nos deu origem há mais de 300
milhões de anos, os mediadores
da sensação de prazer são quase
os mesmos nas duas espécies.
Na seleção natural das espécies,
levaram vantagem reprodutiva
aquelas que desenvolveram mecanismos de recompensa ao prazer com a finalidade de criar a necessidade de buscar sua repetição.
Para o organismo, em princípio,
tudo o que traz bem-estar é bom e
deve ser repetido. Se não fosse assim, nós nos esqueceríamos de
nos alimentar, de fazer sexo ou de
procurar a temperatura mais
agradável na hora de dormir.
Os estudos para entender o mecanismo de neuroadaptação em
resposta aos estímulos repetitivos
de prazer levam a crer que os neurônios se organizem em circuitos
que convergem para estações cerebrais situadas nas proximidades dos centros que coordenam
memórias e emoções. Neurônios
situados nessas estações ligadas à
recompensa estabelecem conexões com outros que convergem
para o chamado centro da busca.
Estes, quando ativados, interferem no comportamento, criando
forte sensação de ansiedade para
induzir o corpo a buscar a repetição do prazer. Por isso o fumante
sai da cama atrás de um bar para
comprar cigarro, o alcoólatra bebe no horário de trabalho e o craqueiro pede esmola para comprar
a droga.
Por um capricho da natureza,
entretanto, a estimulação repetida do centro do prazer pode provocar ativação irreversível do
centro da busca, de modo que este
permanece estimulado mesmo
quando o uso da droga já não
traz mais prazer nenhum. Em outras palavras, o prazer repetido à
exaustão pode disparar o centro
da busca irreversivelmente.
É frequente entre os usuários
crônicos de drogas o aparecimento de quadros persecutórios em
que o dependente imagina ser
perseguido pela polícia ou por algum desafeto. No caso da cocaína, da heroína, do crack, da morfina ou do álcool, não é raro surgirem alucinações em que o usuário vê bichos na parede e inimigos
embaixo da cama. Nessa fase da
adição, nem o dependente é capaz de entender o que o leva a tomar outra dose e a repetir experiência tão dolorosa. O centro da
busca assumiu o controle; obriga
o dependente a ir atrás de um
prazer que não existe mais.
Esse mecanismo neuroadaptativo, associado à tolerância que o
organismo desenvolve a doses
crescentes de qualquer droga administrada repetidas vezes, constrói a armadilha que aprisiona
tantas pessoas no inferno da dependência química. A primeira
cerveja deixa o adolescente bêbado; depois de alguns anos, é preciso tomar meia dúzia para obter
efeito semelhante. A primeira cachimbada de crack tira de órbita
e faz o ouvido zumbir durante
meia hora, mas, após alguns dias
de uso, o efeito dura menos de um
minuto. Pela mesma razão, todo
usuário crônico de maconha se
queixa equivocadamente de que
não existem mais baseados como
aqueles de antigamente.
Em artigo publicado na revista
"Science", um grupo seleto de
neurocientistas mostra que, por
trás do consumo de drogas, das
compulsões alimentares, sexuais
ou de fazer compras, da cleptomania e do vício do jogo ou de fazer exercícios exageradamente,
existe um mecanismo comum de
neuroadaptação.
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