São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2008

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Livros / Crítica/"O Amante"

Romance de Duras soa autobiográfico

Lançado na década de 80, best-seller que visita passagens da vida da escritora e roteirista de cinema volta com nova tradução

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Marguerite Duras publicou "O Amante" em 1984, aos 70 anos, quando já havia se sagrado como escritora, dramaturga, roteirista e diretora de cinema. Sua obra havia recebido elogios de Lacan, Beckett e de Foucault. "Hiroshima, Meu Amor", filmado por Alan Resnais a partir de roteiro de Duras, virara marco da nouvelle vague.
Parecia, portanto, que nenhuma novidade podia vir de sua pena. Mas "O Amante" surpreende. Converte-se em best-seller. A escritora com fama de difícil havia tornado a obra mais digerível ou o público enfim se sofisticara? Nem uma coisa nem outra, propriamente. Duras de fato retoma antigas obsessões numa chave diferente -mas sua intenção talvez não tenha sido a de facilitar. Ela discute esse aspecto no próprio livro. Duras conta que, quando começou a publicar, nos anos 40, premiam-lhe questões de ordem moral. Quarenta anos depois, porém, escrever seria "muitas vezes como se fosse mais nada".
No mesmo parágrafo ela diz: "A história da minha vida não existe"; mas é justamente sua história de vida o tema desta obra. Duras adverte que, com a morte da mãe e dos dois irmãos, seria tarde demais para as lembranças. "Está acabado, não me lembro mais. É por isso que escrevo sobre ela, agora, de modo tão fácil, tão longo, tão estirado, ela se tornou escrita corrente."
Duras vai e volta no passado; aos 15 anos, quando conhece o milionário chinês que se torna seu amante na Indochina francesa (atual Vietnã); antes, em recordações da infância; aos 18, quando tudo está terminado e ela é repatriada; depois, com a morte do irmão mais novo, da mãe, com as falcatruas do irmão mais velho.
Os momentos se confundem porque o verdadeiro tempo é o da memória. É nele que a autora, com o "rosto destruído", tenta reconstituir os diversos rostos, os seus e os dos outros, mesmo que não tenha na lembrança "o cheiro de sua pele" nem nos olhos "a cor dos seus".

Inspirado em fotografias
A ficcionista se refugia no presente do eu, da memória e da escrita (em oposição ao passado da narrativa), no qual pode até supor certos detalhes, que então se tornam significativos: "naquele dia, eu devia estar usando aqueles famosos sapatos de salto alto em lamê dourado".
Curiosamente, é por meio dessa escrita imprecisa e, se quisermos, enganosa, que Duras procura chegar mais perto daquilo que, em narrativas anteriores, vinha "encoberto" - coisas que havia enterrado e não encontravam vazão nos períodos "claros" de criações mais remotas.
Já se comentou que "O Amante" se assemelha a um álbum de fotografias, que sua origem derivou de um pedido do filho da autora para que ela fornecesse legendas para velhas fotos. Em certa altura, Duras discorre sobre o costume dos nativos indochineses de se deixarem fotografar à beira da morte. Esses retratos eram depois retocados, de forma que todos os quase mortos acabavam com a mesma feição, rejuvenescidos e eternos. Trata-se de uma metáfora para a escrita de Duras. No retoque, obtém-se um novo significado para o passado; da mentira, deriva a verdade recalcada; da morte ou da quase morte, brota a vida. Ou o inverso.


O AMANTE
Autor:
Marguerite Duras
Tradução: Denise Bottman
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39,90 (110 págs.)
Avaliação: ótimo


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