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Livros / Crítica/"O Amante"
Romance de Duras soa autobiográfico
Lançado na década de 80, best-seller que visita passagens da vida da escritora e roteirista de cinema volta com nova tradução
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Marguerite Duras publicou "O Amante"
em 1984, aos 70 anos,
quando já havia se sagrado como escritora, dramaturga, roteirista e diretora de cinema.
Sua obra havia recebido elogios
de Lacan, Beckett e de Foucault. "Hiroshima, Meu Amor",
filmado por Alan Resnais a partir de roteiro de Duras, virara
marco da nouvelle vague.
Parecia, portanto, que nenhuma novidade podia vir de
sua pena. Mas "O Amante" surpreende. Converte-se em best-seller. A escritora com fama de
difícil havia tornado a obra
mais digerível ou o público enfim se sofisticara?
Nem uma coisa nem outra,
propriamente. Duras de fato
retoma antigas obsessões numa chave diferente -mas sua
intenção talvez não tenha sido
a de facilitar. Ela discute esse
aspecto no próprio livro. Duras
conta que, quando começou a
publicar, nos anos 40, premiam-lhe questões de ordem
moral. Quarenta anos depois,
porém, escrever seria "muitas
vezes como se fosse mais nada".
No mesmo parágrafo ela diz:
"A história da minha vida não
existe"; mas é justamente sua
história de vida o tema desta
obra. Duras adverte que, com a
morte da mãe e dos dois irmãos, seria tarde demais para
as lembranças. "Está acabado,
não me lembro mais. É por isso
que escrevo sobre ela, agora, de
modo tão fácil, tão longo, tão
estirado, ela se tornou escrita
corrente."
Duras vai e volta no passado;
aos 15 anos, quando conhece o
milionário chinês que se torna
seu amante na Indochina francesa (atual Vietnã); antes, em
recordações da infância; aos 18,
quando tudo está terminado e
ela é repatriada; depois, com a
morte do irmão mais novo, da
mãe, com as falcatruas do irmão mais velho.
Os momentos se confundem
porque o verdadeiro tempo é o
da memória. É nele que a autora, com o "rosto destruído",
tenta reconstituir os diversos
rostos, os seus e os dos outros,
mesmo que não tenha na lembrança "o cheiro de sua pele"
nem nos olhos "a cor dos seus".
Inspirado em fotografias
A ficcionista se refugia no
presente do eu, da memória e
da escrita (em oposição ao passado da narrativa), no qual pode até supor certos detalhes,
que então se tornam significativos: "naquele dia, eu devia estar usando aqueles famosos sapatos de salto alto em lamê
dourado".
Curiosamente, é por meio
dessa escrita imprecisa e, se
quisermos, enganosa, que Duras procura chegar mais perto
daquilo que, em narrativas anteriores, vinha "encoberto" -
coisas que havia enterrado e
não encontravam vazão nos períodos "claros" de criações mais
remotas.
Já se comentou que "O
Amante" se assemelha a um álbum de fotografias, que sua origem derivou de um pedido do
filho da autora para que ela fornecesse legendas para velhas
fotos. Em certa altura, Duras
discorre sobre o costume dos
nativos indochineses de se deixarem fotografar à beira da
morte. Esses retratos eram depois retocados, de forma que
todos os quase mortos acabavam com a mesma feição, rejuvenescidos e eternos.
Trata-se de uma metáfora
para a escrita de Duras. No retoque, obtém-se um novo significado para o passado; da mentira, deriva a verdade recalcada;
da morte ou da quase morte,
brota a vida. Ou o inverso.
O AMANTE
Autor: Marguerite Duras
Tradução: Denise Bottman
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39,90 (110 págs.)
Avaliação: ótimo
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