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Crítica/"Bouvard e Pécuchet"
Livro clássico de Flaubert faz rir com nó na garganta
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quem tiver preparado
aquela famigerada listinha de resoluções de
Ano Novo ainda tem chance de
nela acrescentar um item mais
"realizável" do que os habituais
"vou emagrecer", "vou fazer ginástica", "vou me estressar menos". Seria ele (e o crítico literário é, por dever de ofício, sempre otimista em suas expectativas): "vou ler o livro "Bouvard e
Pécuchet'".
Comédia da imbecilidade (e
da fragilidade) humana, o romance de Gustave Flaubert, como escreveu Juan José Saer,
vai fazer seu leitor rir bastante,
mas muitas risadas serão
acompanhadas de um "nó na
garganta".
Produto de um trabalho insano, para o qual centenas de livros dos assuntos mais diversos
tiveram de ser consultados, o
texto conta o encontro de dois
copistas que se conhecem por
acaso e, percebendo inúmeras
afinidades, resolvem depois de
um tempo juntar as economias
e uma herança que em boa hora
chegara e se mudar para o campo, onde poderiam estudar e fazer experiências a respeito de
tudo que existe.
É assim que, capítulo após
capítulo, a partir de um esquema narrativo absolutamente
estruturado, acompanhamos
os personagens mergulhando
no mundo da agricultura, da
química, da medicina, da história, da literatura, da filosofia, da
religião etc.
Romance inacabado
Como afirma Guy de Maupassant em artigo (reproduzido
em apêndice nesta nova edição) de 1881, publicado quando
o livro é lançado (um ano após a
morte de Gustave Flaubert, que
não consegue terminá-lo), o
texto faz "um exame de todas as
ciências, da forma como elas se
manifestam a dois espíritos
bastante lúcidos, medíocres e
simples".
Possivelmente, uma das
questões centrais da obra seja
que, ainda que a mediocridade
e a simplicidade dos dois amigos se mantenham inalteradas,
os instantes de lucidez parecem se ampliar na mesma medida em que a variedade de temas se multiplica (e o capítulo
sobre religião, nesse sentido, é
devastador).
Daí um pessimismo que o final nunca escrito, mas do qual
são conhecidos os planos, só
consegue exacerbar.
Este inacabamento, aliás, pode ser visto como uma das marcas de distinção da obra, uma
qualidade especial de textos
que talvez tenham chegado
perto demais de um lugar que
não poderia ser alcançado
-textos como "O Processo", de
Franz Kafka, ou "O Homem
Sem Qualidades", de Robert
Musil (se você quiser aumentar
aquela listinha de resoluções de
final de ano...).
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH) da USP
BOUVARD E PÉCUCHET
Autor: Gustave Flaubert
Tradução: Marina Apenzeller
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 48 (400 págs.)
Avaliação: ótimo
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