São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Decifração infinita

Poemas de Stéphane Mallarmé são ápice da tendência da lírica moderna para a abstração

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A PUBLICAÇÃO de "Brinde Fúnebre e Outros Poemas", de Mallarmé, pouco depois do lançamento do livro "Da Poesia à Prosa", de Alfonso Berardinelli (Cosac Naify), propicia um inesperado exercício crítico ao leitor que gosta de remexer nas idéias feitas.
Berardinelli perfaz uma áspera leitura da lírica moderna desde Baudelaire e Leopardi até Valéry e Gottfried Benn, nos quais identifica uma propensão à "poesia pura" que, tendo perdido seu efeito de choque original, redundou em "transcendência vazia" ou obscuridade calculada.
Ambíguo, o crítico italiano não rejeita as obras desses autores, mas as glosas que produziram: como os vates modernos são também teóricos da estética, seu culto de uma dicção abstrata, "fundamentalmente antidiscursiva e auto-referencial", como forma de resistir à massificação, acabou por ironia se transformando em jargão hermético para consumo erudito.
No caso de Mallarmé, seu veredicto é inapelável: "A linguagem da busca pelo absoluto produz, em Mallarmé, um absoluto da linguagem, uma linguagem-fortaleza, linguagem-prisão, uma "turris ebúrnea". A língua da poesia se especializa. Cria um antimundo".
Os versos publicados em "Brinde Fúnebre" correspondem a esse Mallarmé hermético -sobretudo o texto que dá título ao livro e o poema "Prosa". O volume inclui outros, como "Suspiro" (menos impenetrável) e "Esposar a Noção", mas são aqueles dois que convidam à decifração infinita.
O posfácio do tradutor e poeta Júlio Castañon Guimarães reconhece o hermetismo mallarmaico e fornece as chaves de leitura. Seria difícil compreender "Brinde Fúnebre" sem saber que se trata de uma celebração motivada pela morte do escritor Théophile Gautier, na qual o verso que fala da "fé mágica no corredor" constitui "perífrase para vida após a morte". Trata-se, enfim, de um "poema do nada", em que os restos diurnos se transformam não em pesadelos, mas numa confrontação com imagens do fim.
No caso de "Prosa", entramos numa viagem onírica por um jardim de palavras em que cada elemento é som e invocação, em que o verso no qual "a criança do êxtase abdica" pode se referir à etimologia de "enfant" ("criança"), ou seja, "in-fans" ("que não fala"), como emblema de uma incomunicabilidade que aspira superar todo prosaísmo.
Numa passagem de "Brinde Fúnebre", ele escreve: "Nós somos/ A triste opacidade de espectros futuros" -versos que talvez confirmem o diagnóstico de Berardinelli, para quem Mallarmé foi precursor da "depuração anticomunicativa" que dominou a lírica moderna. Mas a bela tradução de Castañon Guimarães renova o prazer de explorar seu antimundo.


BRINDE FÚNEBRE E OUTROS POEMAS
Autor:
Stéphane Mallarmé
Tradução: Júlio Castañon Guimarães
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 27 (110 págs.)
Avaliação: ótimo


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