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ANTONIO CICERO
O falibilismo versus o relativismo
É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas são relativas
ALGUNS LEITORES me disseram
não ter achado claro o significado da expressão "modernidade filosófica", que, no artigo passado, contrapus ao relativismo vulgar. Em outra ocasião, havia citado
Kant para explicar que a modernidade surge e se mantém como a época da crítica, isto é, da razão crítica.
Criticar é separar ou distinguir. A
crítica põe de um lado o que passa
pelo seu crivo e de outro lado o que
não passa por ele. Já que dar nome
às coisas, defini-las, classificá-las etc
são modos de distingui-las umas das
outras, essas atividades representam manifestações da crítica. Assim,
a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por
sua vez, a potencializa.
A crítica distingue entre as proposições logicamente necessárias e as
logicamente contingentes. As necessárias (por exemplo, "A = A") são
aquelas cujo oposto é contraditório,
logo, inconcebível. As contingentes
(por exemplo "a Terra gira em torno
do Sol") são aquelas cujo oposto é
concebível.
Também a dúvida é uma manifestação da razão crítica. A dúvida metódica, que inaugura a filosofia moderna, lembra que, sendo contingente que eu -seja lá quem eu for-
não esteja a delirar ou sonhar, há
sempre, em última análise, a possibilidade de que eu esteja a delirar ou
sonhar. Conseqüentemente, é uma
verdade necessária que, em última
análise, não posso ter certeza absoluta da existência ou efetividade de
coisa nenhuma. Só não posso, é claro, duvidar da efetividade de mim
mesmo, uma vez que, mesmo ao duvidar dela, eu a exerço. Observe-se,
entretanto, que, neste contexto,
"eu" não sou nenhum ser concreto,
de modo que a efetividade em questão é a da própria razão crítica, de
que não passo de portador.
A cláusula "em última análise",
que tenho repetido, está longe de ser
meramente retórica. É só no nível
extremo de radicalidade analítica
que todas as certezas mencionadas
são relativas. No nível dos conhecimentos práticos, usamos as palavras
de outro modo.
Isso é um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo
a qual o tempo passa tanto mais rápido quanto mais rapidamente um
objeto se mova, é algo que só se observa a velocidades próximas da luz.
Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos,
os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim,
no dia-a-dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o
mesmo para todos os objetos, mesmo sabendo que, em última análise,
não é assim.
Do mesmo modo, no nível da vida
corrente, considero ter certeza absoluta de estar sentado em frente ao
meu computador, terminando de
escrever este artigo. Digamos que o
artigo estivesse um pouco atrasado e
o editor do jornal me telefonasse,
perguntando por ele. "Estou terminando de escrevê-lo", diria eu. Talvez ele duvidasse disso e insistisse:
"Tem certeza?". Possivelmente, então, eu lhe responderia, por exemplo: "Certeza absoluta!". Com essa
resposta, eu estaria sendo muito
mais veraz do que se tivesse respondido, no lugar de "certeza absoluta",
"certeza relativa". Por quê? Porque,
nesse último caso, eu lhe daria a falsa impressão de não estar realmente
a terminar o artigo.
Mas por que, então, não abandonar a "última análise" e ficar restrito
ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer
um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de
idéias, tanto laicos quanto religiosos, é importante para, entre outras
coisas, a constituição da ciência.
Chamamos esse reconhecimento de
"falibilismo".
Eis como, no que diz respeito ao
conhecimento, se opõem a modernidade filosófica e o relativismo vulgar. Este nivela todos os pretensos
conhecimentos, considerando-os
como igualmente verdadeiros e/ou
igualmente falsos. A modernidade
filosófica, ao contrário, permite hierarquizar os conhecimentos.
A partir do falibilismo, ela determina a produção do conhecimento
científico como um processo em
princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são -em
última análise- sujeitos a serem revistos ou refutados. A certeza que
posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições
não é menor do que a certeza prática
que tenho de estar sentado em frente ao meu computador. Por outro lado, o falibilismo revela o caráter fictício de todo pretenso conhecimento que se subtraia à razão crítica ou à
inspeção pública, que se baseie em
premissas transcendentes, ou cujas
doutrinas sejam impermeáveis a revisões ou refutações.
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