São Paulo, quarta, 12 de fevereiro de 1997.

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Ninfetas são as últimas mulheres inalcançáveis

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

A revista ``Paparazzi'', especializada em fotografia, põe nas bancas o que se convencionou chamar de ``material polêmico'' em sua última edição. Trata-se de algumas fotos do livro ``Anjos Proibidos'', de Fábio Cabral, recolhido pela Justiça em 1991.
Em ``Anjos Proibidos'', e agora na revista ``Paparazzi'', são mostradas fotografias de ninfetas. Segundo a Justiça, infringia-se o Estatuto do Menor e do Adolescente. Os escândalos de pedofilia na Bélgica iniciaram uma onda repressiva que agora atinge, por exemplo, a refilmagem de ``Lolita''. Como nos anos 60 com o filme de Kubrick, e antes disso, com o romance de Nabokov, pretende-se proibir a história do cinquentão Humbert e de sua enteada adolescente.
Neste clima francamente antipedófilo, surge como grande ousadia a iniciativa da revista. As fotos de David Hamilton, nos anos 70, mostravam meninas púberes em poses românticas, num foco impressionista. Eram vagamente perversas, mas ninguém, segundo me consta, pensou em proibi-las.
Vejo agora as fotos de Fábio Cabral. Garotas de uns treze anos, ou menos, mostram-se com carinhas mal-humoradas, arabescos de pernas e esboços de seios nas páginas da revista.
Escândalo? Exploração da criança e do adolescente? Não sei. As fotos não são pornográficas, longe disso. Claro que as meninas são lindas. Mas até que ponto a qualidade estética de uma foto, de um desenho, absolve um autor da acusação de ser perverso?
Lembro-me quando entrou em cartaz o filme ``Morte em Veneza'', de Visconti. Dirk Bogarde ficava fascinado pela beleza do adolescente Tadzio, todo ele desengonço e graça quebradiça com uma coroa de cabelos louros, leoninos. Logo vieram os comentários: não, Aschenbach (o personagem de Dirk Bogarde) não era homossexual, era apenas um esteta.
Era um modo de moralizar o filme. Se a atração é estética, tudo bem; mas se fosse sexual, aí a coisa muda de figura.
De modo que falar da ``qualidade estética'' desta ou de outra foto -das de Fábio Cabral, das de Mapplethorpe, por exemplo- é uma forma de fugir à discussão que está sendo proposta.
É como se a arte fosse, digamos, o reino da inocência, da pura fruição formal, alheia a qualquer conteúdo, a qualquer matéria. Fábio Cabral poderia ter tirado fotos de velhinhos ou de mendigos, assim como Sebastião Salgado tira fotos de trabalhadores ou de migrantes, e só importaria, ao crítico, notar a simetria, o agenciamento das luzes e dos contornos, a angulação, a regularidade plástica, o ``olhar'' que se cristaliza em cada negativo revelado.
Falar de ``estética'', aqui, seria mais do que nunca fugir do assunto. Do mesmo modo que Sebastião Salgado, Fábio Cabral está interessado em evidenciar ``conteúdos'' -assuntos, temas, vivências, fantasias- e não simplesmente formas bonitas. Suas fotos em ``Anjos Proibidos'' querem mostrar ninfetas deliciosas, corpinhos sensacionais, não há dúvida quanto a isso.
Há pedofilia em ``Anjos Proibidos''? Certamente. Seria hipócrita, e ao mesmo tempo verdadeiro, falar de valor estético nas fotos que a revista ``Paparazzi'' está publicando.
Ninguém vai negar que a infância e adolescência constituem a idade de ouro da beleza humana. Tem-se, entretanto, uma ambiguidade entre a beleza que é enternecimento e encanto, e a beleza que é desejo sexual. Nas fotos das ninfetas da revista, vejo ao mesmo tempo um gesto de sedução e uma aparência de pureza; um misto de casualidade e provocação, de inocência e de pecado.
Obviamente, é isto o que excita o ``voyeur'', o fotógrafo, o pedófilo. Tenho algumas conclusões desagradáveis a tirar sobre a pedofilia e sobre a antipedofilia.
O pedófilo é, no fundo, um moralista. Como tantas outras formas da sexualidade contemporânea (penso no sadomasoquismo e nas blasfêmias religiosas de Madonna), o que se busca, como fonte de excitação, é o proibido, o escandaloso. Todo libertino paga seu dízimo à igreja, pois o que o estimula é o proibido, o impensável.
Ou, num raciocínio inverso: toda igreja, toda moral, oferece um óbolo ao pecador, quando proíbe aquilo que nem ele sabia ser excitante.
Por certo, em toda essa história de lolitas e ninfetas está em jogo o fato de que são proibidas. Nas fotografias da revista, vejo um misto de provocação e inocência, de pureza e de libertinagem. A graça erótica está nisso, na conquista da mulher proibida.
Pois hoje em dia não há mais mulher proibida. De Daniela Mercury a Silvia Pfeiffer, de Malu Mader a Hebe Camargo, todas expõem sua liberdade sexual, sua disponibilidade física aos olhos do consumidor. Como toda mulher erotizou-se e está amplamente comercializada, nos anúncios de absorvente e nos suores de um trio elétrico, é natural até certo ponto que o desejo romântico, que o velho amor cortês, que os antigos tabus românticos se voltem para os ``anjos proibidos'', para as ninfetas, últimas mulheres inalcançáveis, últimos ícones sagrados de nossa cultura.
A culpa de Nabokov, de David Hamilton, de Fábio Cabral, está em lançar crianças como objetos de desejo. Mas a pedofilia é explicável pelo romantismo a que me referi no parágrafo anterior.
E a antipedofilia? Será que é inocente? Durante muitos séculos, uma menina de 14 anos era considerada pronta para o casamento. De uma hora para outra, decidiu-se que só depois de 18 anos uma mulher pode ser legitimamente desejável por um homem. Se ela tiver 15, e o homem 40, o homem é um monstro, e a mulher uma vítima.
Isto é uma hipocrisia. Mais do que uma hipocrisia, é um sintoma. Toda a voga de antipedofilia é contemporânea de uma extrema sexualização das crianças. Meninas de sete anos usam os bustiês e as botinhas da Xuxa. Nos programas infantis, ensina-se a rebolar com shortinhos de couro preto. A dança da garrafa é um patrimônio cultural da infância brasileira. Paquitas e marazinhas angélicas explodem de sensualidade inocente (inocente?) no horário da tarde.
Nos Estados Unidos, há até um concurso de miss para crianças; vi na TV a cabo meninas lindinhas de salto alto, maquiadas.
Minha opinião é que a censura à pedofilia é um sintoma dessa própria sexualização da infância. Censura-se o que se deseja. Reprime-se o que não se quer ver reprimido.
Talvez seja esta a definição de perversão: o interesse pelo proibido. Mas se alguém disser que fotos de crianças estimulam o abuso sexual contra menores, posso responder que fotos de mulheres adultas na ``Playboy'' estimulam o estupro...
A questão é bem mais complexa. Veja-se o caso do professor Gérard Lebrun. Emérito e adorado professor de filosofia na USP. Foi acusado de comprar fotos pornográficas com crianças.
Pessoalmente, acredito que este não seja o seu barato. Mas... e se fosse? Sua condição seria semelhante, creio eu, à do consumidor de drogas. Deve ser condenado e criminalizado? Não foi ele, foi o traficante, quem organizou as crianças em poses obscenas.
O pedófilo merece ser tratado como viciado ou como traficante? Mas que cura existe para a obsessão sexual, que seja equivalente à cura de uma dependência química? Não existe coisa assim.
O fato é que quanto mais se condena a pedofilia, mais estimulado está o interesse por ninfetas, crianças, adolescentes. Claro que nada há de mais horrível do que a prostituição infantil na Tailândia, ou na Amazônia -o livro de Gilberto Dimenstein sobre este último ponto traça um quadro de verdadeiro pesadelo.
Mas todo o ruído em torno do assunto é suspeito; toda repressão tende a ser culposa, porque entende da atração que está em jogo. Atração que é feita do proibido, que se alimenta de uma beleza ingênua e cúmplice. Ninguém é inocente neste jogo; nem quem proíbe, nem quem fotografa, nem quem comenta, nem as próprias ninfetas, que em geral sabem muito bem o que estão fazendo.


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