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FERREIRA GULLAR
Bichos
Somos feitos de tudo que
ocorreu conosco, de tudo que
experimentamos, desde os cheiros
de lama e jasmim até os bichos
que passaram por nossa vida.
Quando digo nós, falo mais de
gente do interior do que de gente
da cidade grande: meus filhos,
quando viram pela primeira vez
uma galinha viva, ficaram maravilhados. Já eu, bem menino, ganhei um macaquinho-de-cheiro,
espertíssimo, que um dia fugiu
pela sapotizeira da casa vizinha.
Um dia ganhei um carneirinho
branco que levava a pastar no capinzal da Quinta dos Medeiros;
eu o provocava, empurrando-lhe
a testa, e ele arremetia, dando-me
marradas. Sumiu de minha vida,
não sei como. Para onde terá ido
meu carneirinho branco?
Mas houve bichos que, ao contrário, me provocavam medo e repugnância, como as cobras e os
escorpiões. Um bicho que povoou
minha infância foi a formiga:
após a primeira chuva do verão,
manavam aos borbotões da parede do quarto, vindas não sabia de
onde. E, no quintal, eram as saúvas vermelhas, que fervilhavam
sobre a terra escura, carregando
pedaços de folhas. Como Bizuza
garantia que "onde tem formiga
tem dinheiro enterrado", eu e minhas irmãs demos a cavar naquele ponto do quintal. Mas desabou
uma tempestade, e nós, enlameados dos pés aos cabelos, desistimos da busca do tesouro.
Nem por isso as formigas saíram de minha vida. Na quitanda
de meu pai, apareceu um rapaz
estranho que puxava assuntos
mais estranhos ainda, quase sempre sobre formigas; mais precisamente sobre os exércitos delas
que, segundo ele, guerreavam sob
as folhas do matagal. E contava
as batalhas que havia assistido
entre legiões de formigas vermelhas e negras -os dois exércitos
equipados de lanças e escudos,
marchando ao som de clarins.
Uma guerra de robôs metálicos
semelhantes aos que hoje se vêem
na televisão. Um dia, o contador
dessas histórias sumiu da quitanda. Vi-o, mais tarde, por acaso,
debruçado no muro do manicômio, espiando a rua, quando por
ali passei de bonde, a caminho da
escola. Não foi, portanto, por acaso que, muitos anos depois, escrevi um poema concreto intitulado
"O Formigueiro", em que as letras
dispersas nas páginas lembravam
formigas e, como no quintal, traçavam ali "o mapa do ouro".
Mas não só de formigas esteve
habitada minha infância: também de galos, frangos e galinhas
-daqui e de Angola. Via os pintos saírem dos ovos, crescerem e
começarem a cantar de galo. Por
isso minha poesia está cheia de
cacarejos, pios de pintos e galos
gritando ao amanhecer.
Já rapaz, ao entrar num barco
para ir a Alcântara, saltou de
dentro dele um rato. O barqueiro,
de remo na mão, o encurralou entre o paredão do cais e a maré que
cobria a rampa. Sem saída, o pequeno animal, de presas à mostra, avançou sobre o homem que,
assustado, deixou que ele se fosse.
Aprendi naquele dia que não se
deve deixar o adversário sem alternativa, pois ele vira fera, mesmo que seja um rato.
Havia, além desses, os bichos silenciosos, especialmente as aranhas. Nos cantos da casa, às vezes
no quintal, surgiam caranguejeiras, abrindo e fechando as mandíbulas. Olhava-as com horror,
mas nenhum mal me fizeram
nem soube de ninguém a quem
tenham atacado. Os escorpiões se
punham em posição de defesa, o
esporão venenoso na ponta do rabo, que erguiam em riste acima
da cabeça. Mas também deles escapei ileso.
Meu reencontro com uma aranha só veio a ocorrer muitos anos
depois, num domingo à tarde,
num apartamento em que morava em Ipanema. Junto ao parapeito da janela de meu escritório,
vi quando a mosca enredou-se na
teia e ficou ali se debatendo; a
aranha se aproximou rapidamente e começou a atá-la com sinistra diligência. Eu poderia evitar a morte da mosca, mas pensei:
se toda vez que uma aranha capturar uma mosca, surgir alguém
para libertá-la, as aranhas morrerão de fome. Elas que se entendam.
A última vez que me defrontei
com uma aranha foi ano passado,
quando abri um dicionário de filosofia: em suas muitas e finíssimas pernas, o pequenino animal,
espantado, correu ou flutuou até
o alto da página e lá se deteve, a
me observar. Nascida e criada entre aquelas páginas, estava ela em
seu mundo, cuidando de seus afazeres vitais, quando eu ali penetrei como uma ameaça. Era enorme a desproporção entre meu tamanho e o dela, menor que a
unha de meu dedo mindinho.
Postada no alto da página, fitava-me tão surpresa quanto eu
com aquele inesperado encontro.
Minha vontade era pedir-lhe desculpa, como faria a uma jovem
em cujo quarto penetrasse intempestivamente. Como não falo a
língua das aranhas, tratei de fechar o livro com todo o cuidado,
de modo a não lhe causar nenhum dano.
Mas o bicho mais afetuoso que
conheci foi um gato siamês. Chamava-se Gatinho e, depois de 16
anos, se foi, meu companheirinho, levando com ele a alegria da
casa.
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