São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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FERREIRA GULLAR

Bichos

Somos feitos de tudo que ocorreu conosco, de tudo que experimentamos, desde os cheiros de lama e jasmim até os bichos que passaram por nossa vida. Quando digo nós, falo mais de gente do interior do que de gente da cidade grande: meus filhos, quando viram pela primeira vez uma galinha viva, ficaram maravilhados. Já eu, bem menino, ganhei um macaquinho-de-cheiro, espertíssimo, que um dia fugiu pela sapotizeira da casa vizinha. Um dia ganhei um carneirinho branco que levava a pastar no capinzal da Quinta dos Medeiros; eu o provocava, empurrando-lhe a testa, e ele arremetia, dando-me marradas. Sumiu de minha vida, não sei como. Para onde terá ido meu carneirinho branco?
Mas houve bichos que, ao contrário, me provocavam medo e repugnância, como as cobras e os escorpiões. Um bicho que povoou minha infância foi a formiga: após a primeira chuva do verão, manavam aos borbotões da parede do quarto, vindas não sabia de onde. E, no quintal, eram as saúvas vermelhas, que fervilhavam sobre a terra escura, carregando pedaços de folhas. Como Bizuza garantia que "onde tem formiga tem dinheiro enterrado", eu e minhas irmãs demos a cavar naquele ponto do quintal. Mas desabou uma tempestade, e nós, enlameados dos pés aos cabelos, desistimos da busca do tesouro.
Nem por isso as formigas saíram de minha vida. Na quitanda de meu pai, apareceu um rapaz estranho que puxava assuntos mais estranhos ainda, quase sempre sobre formigas; mais precisamente sobre os exércitos delas que, segundo ele, guerreavam sob as folhas do matagal. E contava as batalhas que havia assistido entre legiões de formigas vermelhas e negras -os dois exércitos equipados de lanças e escudos, marchando ao som de clarins. Uma guerra de robôs metálicos semelhantes aos que hoje se vêem na televisão. Um dia, o contador dessas histórias sumiu da quitanda. Vi-o, mais tarde, por acaso, debruçado no muro do manicômio, espiando a rua, quando por ali passei de bonde, a caminho da escola. Não foi, portanto, por acaso que, muitos anos depois, escrevi um poema concreto intitulado "O Formigueiro", em que as letras dispersas nas páginas lembravam formigas e, como no quintal, traçavam ali "o mapa do ouro".
Mas não só de formigas esteve habitada minha infância: também de galos, frangos e galinhas -daqui e de Angola. Via os pintos saírem dos ovos, crescerem e começarem a cantar de galo. Por isso minha poesia está cheia de cacarejos, pios de pintos e galos gritando ao amanhecer.
Já rapaz, ao entrar num barco para ir a Alcântara, saltou de dentro dele um rato. O barqueiro, de remo na mão, o encurralou entre o paredão do cais e a maré que cobria a rampa. Sem saída, o pequeno animal, de presas à mostra, avançou sobre o homem que, assustado, deixou que ele se fosse. Aprendi naquele dia que não se deve deixar o adversário sem alternativa, pois ele vira fera, mesmo que seja um rato.
Havia, além desses, os bichos silenciosos, especialmente as aranhas. Nos cantos da casa, às vezes no quintal, surgiam caranguejeiras, abrindo e fechando as mandíbulas. Olhava-as com horror, mas nenhum mal me fizeram nem soube de ninguém a quem tenham atacado. Os escorpiões se punham em posição de defesa, o esporão venenoso na ponta do rabo, que erguiam em riste acima da cabeça. Mas também deles escapei ileso.
Meu reencontro com uma aranha só veio a ocorrer muitos anos depois, num domingo à tarde, num apartamento em que morava em Ipanema. Junto ao parapeito da janela de meu escritório, vi quando a mosca enredou-se na teia e ficou ali se debatendo; a aranha se aproximou rapidamente e começou a atá-la com sinistra diligência. Eu poderia evitar a morte da mosca, mas pensei: se toda vez que uma aranha capturar uma mosca, surgir alguém para libertá-la, as aranhas morrerão de fome. Elas que se entendam.
A última vez que me defrontei com uma aranha foi ano passado, quando abri um dicionário de filosofia: em suas muitas e finíssimas pernas, o pequenino animal, espantado, correu ou flutuou até o alto da página e lá se deteve, a me observar. Nascida e criada entre aquelas páginas, estava ela em seu mundo, cuidando de seus afazeres vitais, quando eu ali penetrei como uma ameaça. Era enorme a desproporção entre meu tamanho e o dela, menor que a unha de meu dedo mindinho. Postada no alto da página, fitava-me tão surpresa quanto eu com aquele inesperado encontro. Minha vontade era pedir-lhe desculpa, como faria a uma jovem em cujo quarto penetrasse intempestivamente. Como não falo a língua das aranhas, tratei de fechar o livro com todo o cuidado, de modo a não lhe causar nenhum dano.
Mas o bicho mais afetuoso que conheci foi um gato siamês. Chamava-se Gatinho e, depois de 16 anos, se foi, meu companheirinho, levando com ele a alegria da casa.


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