São Paulo, quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

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CONTARDO CALLIGARIS

Tirania infantil


Difícil castigar os filhos, já que os encarregamos de encenar a continuação feliz de nossas vidas


NA SEMANA PASSADA , o programa de Boris Casoy (TV Bandeirantes) quis me entrevistar sobre "tirania infantil", ou seja, sobre as crianças que os pais não conseguem controlar e que, de fato, controlam seus pais. Não consegui encontrar um horário para a entrevista; em compensação, fiquei o fim de semana inteiro meditando sobre a tirania infantil.
Claro, pensei na série "Supernanny", que, no Brasil, está na quinta temporada, no SBT. "Supernanny" é um reality show, no qual a educadora Cris Poli visita famílias que se inscreveram previamente pedindo a ajuda de uma superbabá. Poli observa, analisa o que acontece e aconselha os pais. As sugestões práticas de Poli já devem ter ajudado muitos pais desesperados: até agora, há mais de 30 mil famílias que se candidataram. Não é o caso de estranhar: o desespero dos pais que não conseguem controlar suas crianças é a consequência extrema de traços culturais específicos de nossa época.
1) A tirania infantil é o regime no qual vivemos: ela foi decretada há 200 anos, no mínimo. A partir do fim do século 18, acreditando ou não que haja uma vida no além, a gente começou a considerar que a morte é o fim da única vida que importa: a nossa. A continuidade da espécie, do vilarejo, do sobrenome, da alma ou da torcida organizada de nosso time pararam de ser um consolo: "Quando eu morro, a coisa acaba". Só uma exceção: as crianças, que se tornaram, para nós, a única forma concreta de sobrevivência: "Morro, tudo acaba, mas os filhos me continuam, eles jogarão por mim os tempos suplementares de minha vida".
2) Um efeito imediato dessa mudança cultural é que passamos a querer que as crianças sejam (ou pareçam) sempre "felizes". Desejamos que elas encenem a felicidade de nossa vida "futura", ou seja, de nossa vida como esperamos que ela continue depois da nossa morte. Por consequência, educar se tornou impossível: sei que, a longo prazo, Joãozinho e Mariazinha se darão melhor na vida se ele parar de fazer cocô na sala e ela deixar de visitar a cama dos pais a cada noite, mas negar-lhes esses "prazeres" significa encarar um espetáculo de choros, gritos e raiva. Como aguentar a infelicidade daqueles que são encarregados de me mostrar desde já a felicidade que eu não tive, mas que terei post mortem?
Frustrar os filhos significa admitir que nossas frustrações sobrevivem à gente, que, de uma maneira ou de outra, elas continuam na nossa descendência. 3) Na mesma época em que as crianças se tornaram representantes de nossa vida além da morte, começamos a organizar nossa sociedade pelos sentimentos. Não só nos casamos por amor, mas até nossos laços de sangue pouco valem sem os afetos. Passamos de um mundo em que havia laços com ou sem sentimentos (tanto fazia) a um mundo em que os sentimentos são condição dos laços.
Por exemplo, para ser pai ou mãe é preciso ser reconhecido e amado como pai ou mãe; o respeito não é gratuito nem "natural": ele é ganho como se ganha o afeto do outro em qualquer relação. Os pais modernos devem, em suma, conquistar (e manter) seu lugar no coração e na cabeça dos filhos. Sem isso, eles param de ser pais. Portanto, a cada vez que eles impõem um castigo ou fincam o pé, eles são corroídos pelo medo de perder seu próprio lugar de pai e mãe, porque 1) as crianças poderiam deixar de amá-los; 2) eles mesmos estariam, naquele instante, deixando de amar suas crianças. Certo, na hora da irritação, amamos menos nossos rebentos; problema: se o amor é condição dos laços, eis que a família é ameaçada de dissolução por nossa "severidade". Castigar parece valer como uma expulsão do lar.
Por isso, os pais não conseguem castigar sem culpa, e as crianças castigadas, por exemplo, fogem de casa, entendendo que seu lugar não é mais ali. 4) Como se não bastasse, o castigo é imediatamente acompanhado por seu contrário. Os pais tentam se impor e se fazer valer (recorrendo, exasperados, até à força), mas, com isso, receiam perder o amor da criança e seu amor por elas, ou seja, receiam acabar com a família. Logo, quando eles castigam, querem imediatamente "reparar" o amor: a educação se transforma assim numa alternância repentina de pancadas e mimos.
Tranquilize-se: as crianças não enlouquecem; mas se tornam, isso sim, manipuladoras, ou seja, aprendem a produzir elas mesmas a alternância que desejam: "Castigue-me, que estou a fim de um mimo".

ccalligari@uol.com.br


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