São Paulo, sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

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ENTREVISTA

MICHAEL HANEKE

Transmitir ilusão de realidade é um engodo

Para o diretor de "A Fita Branca", vencedor da Palma de Ouro em Cannes, fazer cinema é, antes de tudo, manipular

Divulgação
Cena do filme, que se passa naA lemanha pré-nazista e mostra sociedade oprimida por valores absolutos impostos a crianças

ANA PAULA SOUSA
DA REPORTAGEM LOCAL

Michael Haneke é um manipulador assumido. Nascido na Alemanha, criado na Áustria e autor de vários filmes falados em francês, o cineasta parece, num efeito-espelho, refletir as nacionalidades em variadas identidades. Haneke é perverso ("A Professora de Piano"), violento ("Violência Gratuita"), sociológico ("Código Desconhecido"). É, ainda, um jogador que move as imagens feito peças de xadrez ("Cachê").
E, como atesta "A Fita Branca", o mais refinado e ambicioso de seus filmes, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2009, Haneke é também tudo isso ao mesmo tempo. Aos 67 anos e com o prestígio que os troféus asseguram (ganhara seis prêmios em Cannes com "A Professora de Piano" e "Cachê"), o diretor parece à vontade defronte ao espelho embaçado que reflete não só sua obra, mas sua personalidade.
Nesta entrevista, concedida à Folha por e-mail, foi o Haneke seco tantas vezes descrito por jornalistas que o acompanham mundo afora. Nada a ver, por exemplo, com o "Happy Haneke" (Haneke feliz) flagrado num longo perfil feito pela revista "New Yorker". Manipulador das imagens, parece temer que, lançadas sem uma corda a prendê-las, as palavras contradigam os sentidos que suas imagens buscam construir.

FOLHA - Por que, apesar de tratar-se de um filme histórico, às vésperas da Primeira Guerra, o sr. fez questão de deixar o público em dúvida sobre a verdade do que verá.
MICHAEL HANEKE - Não gosto de filmes históricos que tentam dar a ilusão de realidade. É um engodo, já que os fatos são contados a posteriori. Assumir a mentira é, paradoxalmente, o único meio de se aproximar da verdade histórica.

FOLHA - O "Le Monde" definiu o filme como um prefácio a todos os horrores do século 20. Mas é também um filme sobre o nazismo. Como o sr. o define?
HANEKE - Tinha vontade de tratar da educação que impõe valores absolutos às crianças, que acabam por interiorizá-los. Queria mostrar que, se têm o caráter formado a partir de um princípio absoluto, elas se tornam inumanas. Cada ato terrorista, cada manifestação de fanatismo, seja ele político, religioso ou de outra natureza, é alimentado por essa fonte de intransigência. Qualquer ideia se torna perversa se tem, como ponto de partida, o autoritarismo. Esse é um tema universal, que não tem ligação direta com a problemática alemã. O filme não é sobre nazismo.

FOLHA - Por que o preto e branco?
HANEKE - Na memória coletiva, o começo do século 20 é preto e branco, sobretudo por causa das fotos de época. Essa tonalidade oferece um distanciamento. Como o narrador não dispõe de uma visão completa da verdade, é também uma forma de alimentar a desconfiança do espectador sobre a noção de realidade no cinema. A fotografia indica que não se trata de uma história naturalista.

FOLHA - O senhor foi criado sob o protestantismo. Isso o afetou?
HANEKE - Fui criado sob o protestantismo e meu pai era protestante. À época, achava isso incrível: de saída, me diferenciava dos meus colegas. Me atraía também o contato direto do fiel com Deus, ao contrário dos católicos, que tinham necessidade de um padre como intermediário para o perdão dos pecados. Éramos nossos próprios juízes. Mais tarde, quando era diretor na TV alemã, reencontrei Ulrike Meinhof [líder de conhecido grupo guerrilheiro alemão, nos anos 70]. Ela vinha de uma família extremamente protestante, como Gudrun Ensslin e Baader [outros integrantes do grupo] e seu pai era pastor. Fiquei convicto de que uma das razões de seu extremismo foi o rigor de sua educação.

FOLHA - Trabalhar com crianças modificou sua direção?
HANEKE - Meu terror era não encontrar as crianças que eu queria antes do início das filmagens. Fizemos um "casting" gigantesco: seis meses de pesquisa e 7.000 crianças testadas. Mesmo com os melhores entre eles, tive de me adaptar. Na cena na qual o menino aprende, com a irmã, o que é a morte, só podia utilizar plano e contraplano. Um plano-sequência estava excluído: não poderia exigir que uma criança atuasse bem por tanto tempo.

FOLHA - "A Fita Branca" é um filme de personagens. O senhor quis mostrar que pode fazer também um cinema narrativo?
HANEKE - Quando reli algumas entrevistas dadas no correr dos anos, me dei conta de que me associam a uma filmografia fundada sobre as ideias. E não é verdade. Me interesso pelos personagens e pelas situações. Acredito que o cinema, como a vida, é tecida ao acaso.

FOLHA - Seu cinema é descrito como um cinema que tem a intenção de chocar. Tem?
HANEKE - O cinema é a arte da manipulação. Isso é algo que não devemos esquecer nem quando fazemos um filme nem quando o assistimos. O que sempre quis é que meus filmes sugerissem uma dúvida sobre a realidade que mostram.

FOLHA - "Violência Gratuita" é, claramente, uma tentativa de agressão.
HANEKE - "Violência Gratuita" era um tapa na cara de cineastas que nos forçam a consumir violência, sem se preocupar com isso. Mas eu queria sacudir os espectadores. O espectador é falsamente ingênuo. Aceita ser "violentado" por filmes que acha inofensivos, mas que acabam por fazê-lo esquecer o que é a verdadeira violência.

FOLHA - O que o senhor espera do espectador?
HANEKE - Acredito na inteligência do espectador e tento dar a ele liberdade de compreensão. Nenhuma interpretação é ruim. Há tantos filmes quantos espectadores houver. Espero desencadear um processo de reflexão. Um filme só se conclui de fato na cabeça deles.

FOLHA - Algo mudou após a Palma de Ouro?
HANEKE - Agora tenho uma Palma de Ouro no meu escritório.


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