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ENTREVISTA
MICHAEL HANEKE
Transmitir ilusão de realidade é um engodo
Para o diretor de "A Fita Branca", vencedor da Palma de Ouro em Cannes, fazer cinema é, antes de tudo, manipular
Divulgação
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Cena do filme, que se passa naA lemanha pré-nazista e mostra sociedade oprimida por valores absolutos impostos a crianças
ANA PAULA SOUSA
DA REPORTAGEM LOCAL
Michael Haneke é um manipulador assumido. Nascido na
Alemanha, criado na Áustria e
autor de vários filmes falados
em francês, o cineasta parece,
num efeito-espelho, refletir as
nacionalidades em variadas
identidades. Haneke é perverso
("A Professora de Piano"), violento ("Violência Gratuita"),
sociológico ("Código Desconhecido"). É, ainda, um jogador
que move as imagens feito peças de xadrez ("Cachê").
E, como atesta "A Fita Branca", o mais refinado e ambicioso de seus filmes, vencedor da
Palma de Ouro em Cannes em
2009, Haneke é também tudo
isso ao mesmo tempo. Aos 67
anos e com o prestígio que os
troféus asseguram (ganhara
seis prêmios em Cannes com
"A Professora de Piano" e "Cachê"), o diretor parece à vontade defronte ao espelho embaçado que reflete não só sua
obra, mas sua personalidade.
Nesta entrevista, concedida à
Folha por e-mail, foi o Haneke
seco tantas vezes descrito por
jornalistas que o acompanham
mundo afora. Nada a ver, por
exemplo, com o "Happy Haneke" (Haneke feliz) flagrado
num longo perfil feito pela revista "New Yorker". Manipulador das imagens, parece temer
que, lançadas sem uma corda a
prendê-las, as palavras contradigam os sentidos que suas
imagens buscam construir.
FOLHA - Por que, apesar de tratar-se de um filme histórico, às vésperas
da Primeira Guerra, o sr. fez questão
de deixar o público em dúvida sobre
a verdade do que verá.
MICHAEL HANEKE - Não gosto de
filmes históricos que tentam
dar a ilusão de realidade. É um
engodo, já que os fatos são contados a posteriori. Assumir a
mentira é, paradoxalmente, o
único meio de se aproximar da
verdade histórica.
FOLHA - O "Le Monde" definiu o filme como um prefácio a todos os
horrores do século 20. Mas é também um filme sobre o nazismo. Como o sr. o define?
HANEKE - Tinha vontade de tratar da educação que impõe valores absolutos às crianças, que
acabam por interiorizá-los.
Queria mostrar que, se têm o
caráter formado a partir de um
princípio absoluto, elas se tornam inumanas. Cada ato terrorista, cada manifestação de fanatismo, seja ele político, religioso ou de outra natureza, é
alimentado por essa fonte de
intransigência. Qualquer ideia
se torna perversa se tem, como
ponto de partida, o autoritarismo. Esse é um tema universal,
que não tem ligação direta com
a problemática alemã. O filme
não é sobre nazismo.
FOLHA - Por que o preto e branco?
HANEKE - Na memória coletiva,
o começo do século 20 é preto e
branco, sobretudo por causa
das fotos de época. Essa tonalidade oferece um distanciamento. Como o narrador não dispõe
de uma visão completa da verdade, é também uma forma de
alimentar a desconfiança do espectador sobre a noção de realidade no cinema. A fotografia
indica que não se trata de uma
história naturalista.
FOLHA - O senhor foi criado sob o
protestantismo. Isso o afetou?
HANEKE - Fui criado sob o protestantismo e meu pai era protestante. À época, achava isso
incrível: de saída, me diferenciava dos meus colegas. Me
atraía também o contato direto
do fiel com Deus, ao contrário
dos católicos, que tinham necessidade de um padre como
intermediário para o perdão
dos pecados. Éramos nossos
próprios juízes. Mais tarde,
quando era diretor na TV alemã, reencontrei Ulrike Meinhof [líder de conhecido grupo
guerrilheiro alemão, nos anos
70]. Ela vinha de uma família
extremamente protestante, como Gudrun Ensslin e Baader
[outros integrantes do grupo] e
seu pai era pastor. Fiquei convicto de que uma das razões de
seu extremismo foi o rigor de
sua educação.
FOLHA - Trabalhar com crianças
modificou sua direção?
HANEKE - Meu terror era não
encontrar as crianças que eu
queria antes do início das filmagens. Fizemos um "casting"
gigantesco: seis meses de pesquisa e 7.000 crianças testadas.
Mesmo com os melhores entre
eles, tive de me adaptar. Na cena na qual o menino aprende,
com a irmã, o que é a morte, só
podia utilizar plano e contraplano. Um plano-sequência estava excluído: não poderia exigir que uma criança atuasse
bem por tanto tempo.
FOLHA - "A Fita Branca" é um filme
de personagens. O senhor quis mostrar que pode fazer também um cinema narrativo?
HANEKE - Quando reli algumas
entrevistas dadas no correr dos
anos, me dei conta de que me
associam a uma filmografia
fundada sobre as ideias. E não é
verdade. Me interesso pelos
personagens e pelas situações.
Acredito que o cinema, como a
vida, é tecida ao acaso.
FOLHA - Seu cinema é descrito como um cinema que tem a intenção
de chocar. Tem?
HANEKE - O cinema é a arte da
manipulação. Isso é algo que
não devemos esquecer nem
quando fazemos um filme nem
quando o assistimos. O que
sempre quis é que meus filmes
sugerissem uma dúvida sobre a
realidade que mostram.
FOLHA - "Violência Gratuita" é, claramente, uma tentativa de agressão.
HANEKE - "Violência Gratuita"
era um tapa na cara de cineastas que nos forçam a consumir
violência, sem se preocupar
com isso. Mas eu queria sacudir
os espectadores. O espectador é
falsamente ingênuo. Aceita ser
"violentado" por filmes que
acha inofensivos, mas que acabam por fazê-lo esquecer o que
é a verdadeira violência.
FOLHA - O que o senhor espera do
espectador?
HANEKE - Acredito na inteligência do espectador e tento dar a
ele liberdade de compreensão.
Nenhuma interpretação é
ruim. Há tantos filmes quantos
espectadores houver. Espero
desencadear um processo de
reflexão. Um filme só se conclui
de fato na cabeça deles.
FOLHA - Algo mudou após a Palma
de Ouro?
HANEKE - Agora tenho uma Palma de Ouro no meu escritório.
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