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CINEMA "MAUS HÁBITOS"
Pedro Almodóvar mescla blasfêmia e deboche
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Ao ver os primeiros filmes do espanhol Pedro Almodóvar, o espectador é levado quase obrigatoriamente a comparar essa primeira
fase com a atual.
A primeira, de "Maus Hábitos", é
mais anárquica, menos madura,
mais rebelde, menos intelectual.
É mais visível a influência de Buñuel, não apenas no despojamento
da encenação, como no recurso à
blasfêmia bem-humorada e ao escândalo como formas de combate
ao conservadorismo católico.
Em "Maus Hábitos", estamos no
convento das freiras "redentoras"
humilhadas, especialistas, no passado, em reformar mulheres desviadas de todas as espécies. A fascinação pelo mal que as leva a buscar
a redenção das mulheres perdidas
leva o convento a cultivar, com o
tempo, uma espécie muito particular de teologia.
Ali, a experiência de Cristo é vivenciada um pouco à maneira do
poeta inglês William Blake. Cristo,
sustenta a superiora das religiosas,
morreu na cruz para nos libertar
do pecado e da culpa.
Se foi assim, não existe mais culpa e pecado, o que as leva a um modo de vida em que, com uma fé sincera, convivem drogas, lesbianismo, baladas de amor, livros mundanos.
Quando a intriga começa, o convento encontra-se às moscas, já
que, aparentemente, nos dias que
correm (o filme é de 1984), há pouca gente buscando a redenção. No
mais, a sustentação financeira, que
lhes era dada por um homem rico e
piedoso, é subitamente retirada,
após a sua morte.
A salvação das religiosas surge
na pessoa da cantora Yolanda Bell,
que ali se refugia após a morte de
seu namorado (por uso de heroína
misturada a estricnina). A superiora apaixona-se pela cantora no ato.
Em certo sentido, Almodóvar
ainda acerta as contas com o período franquista e sua carolice, num
momento de passagem da Espanha à democracia. Mas, mais do
que isso, procura dar conta da sensualidade que existe na experiência católica. Isso pode ser verificado não apenas na cenografia (o
quarto que será ocupado pela cantora, em particular), como na modernização da experiência poética
e alucinatória de certos místicos
do passado (São João da Cruz, Santa Teresa D'Ávila). Agora, a experiência da alucinação é fornecida
pelo LSD em pessoa.
Embora a tensão dramática esteja presente -assim como uma
evidente simpatia por suas heréticas heroínas-, o que dá o tom é o
deboche. Nesse sentido, estamos
longe, ainda, do último Almodóvar, que entrou de cabeça na tradição melodramática hispânica.
Há pouco mais de um ano, o cineasta espanhol afirmava, numa
entrevista, que para ele a liberdade
era fazer os filmes que queria, e
não criar uma grife, que funcionaria como prisão.
A visão de "Maus Hábitos", 15
anos depois, confirma esse esforço
do cineasta, de ser fiel a si mesmo
sem se imobilizar, sem se deixar
aprisionar pela imagem do que seriam seus filmes.
O Almodóvar de hoje é o mesmo
libertário de antes, mas de maneira
diferente. Ele mudou, é provável
que a Espanha também tenha mudado. Seus filmes continuam, quase sempre, a entender o cinema como confrontação com a realidade
imediatamente contemporânea.
As ilusões amorosas -seu tema
mais frequente- não são, nesse
sentido, muito diferente das alucinações ou das ilusões políticas. O
mundo, para Almodóvar, pode ser
um inferno ou um paraíso, tanto
faz. O certo é que é artificial.
Filme: Maus Hábitos
Produção: Espanha, 1984
Direção: Pedro Almodóvar
Com: Cristina Sánchez Pascual, Julieta
Serrano, Marisa Paredes
Quando: estréia hoje no Espaço Unibanco 3
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