São Paulo, Sexta-feira, 12 de Fevereiro de 1999
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CINEMA "MAUS HÁBITOS"
Pedro Almodóvar mescla blasfêmia e deboche

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Ao ver os primeiros filmes do espanhol Pedro Almodóvar, o espectador é levado quase obrigatoriamente a comparar essa primeira fase com a atual.
A primeira, de "Maus Hábitos", é mais anárquica, menos madura, mais rebelde, menos intelectual.
É mais visível a influência de Buñuel, não apenas no despojamento da encenação, como no recurso à blasfêmia bem-humorada e ao escândalo como formas de combate ao conservadorismo católico.
Em "Maus Hábitos", estamos no convento das freiras "redentoras" humilhadas, especialistas, no passado, em reformar mulheres desviadas de todas as espécies. A fascinação pelo mal que as leva a buscar a redenção das mulheres perdidas leva o convento a cultivar, com o tempo, uma espécie muito particular de teologia.
Ali, a experiência de Cristo é vivenciada um pouco à maneira do poeta inglês William Blake. Cristo, sustenta a superiora das religiosas, morreu na cruz para nos libertar do pecado e da culpa.
Se foi assim, não existe mais culpa e pecado, o que as leva a um modo de vida em que, com uma fé sincera, convivem drogas, lesbianismo, baladas de amor, livros mundanos.
Quando a intriga começa, o convento encontra-se às moscas, já que, aparentemente, nos dias que correm (o filme é de 1984), há pouca gente buscando a redenção. No mais, a sustentação financeira, que lhes era dada por um homem rico e piedoso, é subitamente retirada, após a sua morte.
A salvação das religiosas surge na pessoa da cantora Yolanda Bell, que ali se refugia após a morte de seu namorado (por uso de heroína misturada a estricnina). A superiora apaixona-se pela cantora no ato.
Em certo sentido, Almodóvar ainda acerta as contas com o período franquista e sua carolice, num momento de passagem da Espanha à democracia. Mas, mais do que isso, procura dar conta da sensualidade que existe na experiência católica. Isso pode ser verificado não apenas na cenografia (o quarto que será ocupado pela cantora, em particular), como na modernização da experiência poética e alucinatória de certos místicos do passado (São João da Cruz, Santa Teresa D'Ávila). Agora, a experiência da alucinação é fornecida pelo LSD em pessoa.
Embora a tensão dramática esteja presente -assim como uma evidente simpatia por suas heréticas heroínas-, o que dá o tom é o deboche. Nesse sentido, estamos longe, ainda, do último Almodóvar, que entrou de cabeça na tradição melodramática hispânica.
Há pouco mais de um ano, o cineasta espanhol afirmava, numa entrevista, que para ele a liberdade era fazer os filmes que queria, e não criar uma grife, que funcionaria como prisão.
A visão de "Maus Hábitos", 15 anos depois, confirma esse esforço do cineasta, de ser fiel a si mesmo sem se imobilizar, sem se deixar aprisionar pela imagem do que seriam seus filmes.
O Almodóvar de hoje é o mesmo libertário de antes, mas de maneira diferente. Ele mudou, é provável que a Espanha também tenha mudado. Seus filmes continuam, quase sempre, a entender o cinema como confrontação com a realidade imediatamente contemporânea.
As ilusões amorosas -seu tema mais frequente- não são, nesse sentido, muito diferente das alucinações ou das ilusões políticas. O mundo, para Almodóvar, pode ser um inferno ou um paraíso, tanto faz. O certo é que é artificial.

Filme: Maus Hábitos
Produção: Espanha, 1984
Direção: Pedro Almodóvar
Com: Cristina Sánchez Pascual, Julieta Serrano, Marisa Paredes
Quando: estréia hoje no Espaço Unibanco 3



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