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CARLOS HEITOR CONY
A noite, a moça e a fuga
Pescava em cima de umas
pedras que estavam dentro
do lago. Olhou para trás e viu que
a mulher o observava. O céu era
cinzento, ameaçava chuva, a região deserta. Olharam-se nos
olhos, a mulher falou qualquer
coisa que o encorajasse -o que
não foi preciso. Havia um atalho,
penetraram no pequeno bosque
de bambus -havia muitos ali.
Amaram-se sem esforço.
- Querendo, você pode me visitar hoje à noite.
- Não tem gente em casa?
- Tem as meninas. Meu marido foi ao Rio, é funcionário federal.
- Eu vi, outro dia, uma moça
no quintal...
- Marina? É a mais velha.
Tem 14 anos. Dorme cedo e não
acorda nem com um terremoto.
Combinaram os detalhes e ele a
procurou várias noites, na sala ao
lado do quarto onde, amontoados, dormiam Marina e três irmãos menores.
O marido regressaria no fim de
semana, e, na última noite em
que ali dormiu, acordou com os
gritos das crianças: um porco fugira do cercado e invadira a cozinha. Fuçou, fuçou e penetrou no
quarto. Um dos meninos dormia
no chão, ao lado da cama de Marina. O porco cheirou, cheirou e
começou a comer um dos pés do
garoto. Chegou a devorar alguns
dedos dos pé.
Marina acordou com o barulho
do porco e do menino, invadiu o
quarto da mãe berrando. Deu
com ele na cama, preparando-se
para levantar. A mãe dormia ainda, pesada, cansada.
Ele suspeitou que Marina já tivesse surpreendido a mãe com
outros homens, em situações
iguais ou piores: olhou-o sem surpresa, mas sem raiva. Quanto ao
porco, os gritos de Marina e dos
irmãos o espantaram. Deixou o
menino aos berros, sem três dedos
do pé.
No dia seguinte, quando se dirigia ao lago para pescar, passou
pela casa e encontrou a mulher
na janela, coçando as costas do
marido que, de camisa de meia,
apoiava-se no peitoril para apreciar a paisagem, deixando à mostra dois braços peludos e fortes.
Odiou a mulher e, ao passar pelo
quintal, olhou o porco que fizera
o estrago na véspera. Era enorme,
obeso, rolando banha pelo chão
enlameado. Marina lá estava,
dando comida aos animais.
Cumprimentou-a e ele percebeu
que já era realmente moça. Viu
Marina afastar-se e só então reparou que ela capengava de uma
perna.
Chamou-a, ela não acreditou,
ninguém a chamava.
- Que foi isso na sua boca?
- O padrasto me bateu. Ele me
odeia.
- E sua mãe? Não a defende?
- Ela também me odeia.
- Posso fazer alguma coisa?.
- Pode. Me tire daqui, vou para qualquer lugar que me leve.
- Mas levar como? Sou estudante, não tenho emprego, moro
sozinho no Rio... Levar aonde?
Ele notou que a moça esperava
por isso. Abaixou a cabeça e parecia ir embora.
- Que que há agora? Por que
está chorando assim?
- Todas as vezes que via o senhor passar, pensava que fosse
por mim, para me ver. Até que
veio aquele dia, quando o porco
invadiu a casa, o senhor estava
no quarto, com ela...
- Mas...
Ele achou tudo complicado:
- Eu mal conheço vocês. E o
que sei é horrível. Se eu me largo
com uma menor por aí, o seu padrasto bota a polícia atrás da gente...
Ela agarrou-se nele. Não pôde
evitá-la. Rosto encostado no rosto, ele viu os arranhões que o padrasto deixara nos ombros dela.
Sentiu pena daquela menina que
tremia em seus braços, pomba assustada, enferma.
- Vou pensar, Marina, vou
pensar.
- Hoje eu não volto para casa
de jeito nenhum! Não quero mais
ver aquele homem! E ele está esperando que eu volte, a mãe está
fora, não posso passar a noite com
ele...
- Bem, nesse caso, acho que
quem deve ir à polícia é você. Posso acompanhá-la. Você faz a
queixa.
- Polícia! Não vai adiantar
nada! O padrasto é amigo do pessoal da polícia, viaja todo o mês
para o Rio. Todos têm medo dele!
Ele se sentiu envergonhado ao
atravessar a rua principal da cidadezinha. Todos olhavam o forasteiro, o estudante do Rio, metido com a menina descalça, maltrapilha, os cabelos desalinhados.
Na pensão, ele pediu a conta.
Sobrou dinheiro, o bastante para
a passagem dela. E para comprar
um vestido ordinário, um par de
sandálias. Marina arrumou-se no
lavatório das senhoras, na própria estação da Rede Mineira de
Viação -um lavatório cheirando a coisas podres.
- Estou bonita?
Ele a esperava na plataforma.
Quando viu a menina mal embrulhada no vestido ordinário, teve mais pena de si mesmo do que
dela.
"Seja o que Deus quiser!"
Fizeram hora até a chegada do
noturno. Alojaram-se na segunda
classe. Amanheceram em Cruzeiro. Ele olhou a companheira. A
intimidade com as galinhas, os
porcos, os cabritos fazia vir dela o
cheiro de bicho, de mato.
Ela despertou. Olhou em torno:
- Onde estamos?
Ele mostrou a tabuleta com o
nome da estação.
- Veja!
Ela olhou na direção indicada.
- Desculpe. Eu não sei ler as letras.
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