São Paulo, quarta-feira, 12 de março de 2008

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MARCELO COELHO

Os despertos e os ausentes

As coisas hoje parecem feitas para nos deixar desatentos; no barulho, não ouvimos nada

DISTÚRBIOS DE sono, déficit de atenção, hiperatividade: muita criança inteligente sofre com isso, e ainda bem que hoje essas coisas pelo menos se diagnosticam. Sem informação sobre o assunto, era automático nos professores de antigamente acusar o aluno de pura indisciplina ou de burrice.
Mas talvez exista um bocado de verdade no que dizia uma grande educadora de outros tempos a respeito das virtudes da energia intelectual, da entrega e da atenção. Trata-se de Nadia Boulanger (1887-1979), talvez a mais importante professora de composição erudita do século 20. Dezenas de músicos famosos passaram por ela: de Daniel Barenboim a Astor Piazzolla, de Aaron Copland a Elliott Carter, de Igor Markevitch a Burt Bacharach, passando por Camargo Guarnieri e Egberto Gismonti, seu ensino ("draconiano", como ela própria dizia) formou gerações de compositores e de intérpretes.
Saiu agora em DVD um documentário já antigo, em preto-e-branco, feito por Bruno Monsaingeon quando "Mademoiselle", como a chamavam, completou 90 anos, durinha e lúcida como ela só.
Músicos de toda parte do mundo ainda faziam fila para assistir a suas aulas. Como selecioná-los? Sem dúvida, o talento natural era a primeira coisa a avaliar. Igualmente importante, contudo, era a capacidade de concentração.
Tudo se torna absolutamente inútil, diz Boulanger, quando de uma semana para a outra o aluno se esquece do que aprendeu... Ela conta o exemplo de Stravinsky, seu grande amigo: mesmo quando estava jogando cartas, ele se entregava completamente ao que fazia.
Nessa hora, o filme mostra uma foto de Stravinsky com o baralho na mão. O compositor russo, meio de perfil, grandes óculos de massa preta, raros cabelos grudados com fixador em volta da orelha, encara o jogo como se quisesse hipnotizar as próprias cartas. Sente-se que Stravinsky está integralmente ali. É ele mesmo, ele próprio, inteiro, quem vive aquele momento. Imagino que fosse assim o tempo todo.
Nesse sentido, Boulanger acaba usando um termo antiquado. Diz que a atenção é "um traço de caráter". Entende que um grande músico possa ter personalidade odiosa; "caráter", em seu vocabulário, não parece ter muito a ver com isso.
Fiquei pensando se o termo não significaria, antes de mais nada, uma capacidade de "estar presente", coisa que não se resume apenas ao aspecto moral. Sem dúvida, "ausentar-se" de uma situação difícil é sinal, não digo de falta, mas de fraqueza de caráter.
Mas o que dizer de alguém que, por exemplo, se ausenta de sua própria vocação, e que mal responde aos apelos de sua própria inteligência, de seu próprio dom? Que professor poderia ajudar alguém assim? Felizmente, Boulanger não menospreza demais esse tipo de pessoas. São, diz ela, os "adormecidos". Cumprirão a seu modo, e quem sabe com grandeza, o seu destino pessoal.
Mas o destino dessa professora era tratar dos que estão despertos. "Dom" é outra palavra que Nadia Boulanger utiliza com plena convicção, sem relativismo nem correção política. A idéia adquire, em suas frases, ressonância quase religiosa.
Curioso, afinal, que outro sinônimo de "dom" seja "presente". É como se, num artista como Stravinsky, por exemplo, estivesse em curso uma troca permanente entre seu trabalho e sua natureza: os presentes recebidos se retribuem com "presença", os dons se respondem com novas doações.
Stravinsky dedicou uma peça a Nadia Boulanger, chamando-a de "aquela que ouve tudo". De novo, é a atenção. No filme, o compositor Leonard Bernstein confirma essa qualidade de Boulanger. Tocou para ela os primeiros acordes, complicadíssimos, de uma peça para canto e piano. Meio compasso depois, a mão esquerda estourava um si bemol no grave.
"Não, não!", pulou a professora. "Ça ne va pas!" Aos 58 anos, Bernstein não precisava de aulas de ninguém; era só amigo de "Mademoiselle". "Mas eu me senti um aluno de primeiro ano." A professora tinha escutado uma repetição banal no meio da sofisticada barafunda bernsteiniana.
Voltando aos distúrbios de atenção. Podem ter causas neurológicas reais. Não só entre as crianças, contudo, as coisas hoje em dia parecem feitas para nos deixar o tempo todo desatentos. No meio do barulho, não ouvimos coisa nenhuma, nem sequer a nós mesmos.
Fico por aqui, não sem observar que, se o leitor chegou até o fim do artigo, já temos, ambos, de comemorar nossa atenção.


coelhofsp@uol.com.br

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