São Paulo, quinta, 12 de março de 1998

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Ex-guru do tropicalismo lança a sua verdade tropical

"Baghavad Gita", poema épico hindu, ganha tradução de Rogério Duarte escritor

Rogério Assis/Folha Imagem
O escritor Rogério Duarte, que lança livro com sua "verdade tropical"


MARIO VITOR SANTOS
enviado especial a Itaboraí (RJ)

Rogério Duarte chega reclamando de dor de cabeça, que ele atribui a um sonho da noite anterior. No sonho, uma multidão o persegue e o ataca com pedras de ferro. Aos agressores, Duarte diz apenas: "Mas o que é isso que vocês estão fazendo?".
Ex-guru do tropicalismo, integrante do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (quando era conhecido pelos adversários como Rogério Caos), quadro de agitprop do Partido Comunista no início dos anos 60, parceiro de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Glauber Rocha, compositor, músico, escritor, preso político, torturado e, principalmente, programador visual, Duarte está lançando o que chama de a sua "Verdade Tropical".
Explica: "Caetano Veloso não é o único porta-voz do tropicalismo. Ele fala dele. A verdade tropical de Rogério Duarte é outra. A de Gil é outra. Há também um misticismo tropicalista. Existem vários tropicalismos. O de Caetano é legítimo, mas não é único".
A verdade tropical de Duarte chega este mês às livrarias. Trata-se da tradução do sânscrito para o português do poema épico hindu "Baghavad Gita" ou "Canção do Divino Mestre" (Cia. das Letras), um trabalho em que se empenhou por 20 anos.
O livro traz encartado um CD -"Canções do Divino Mestre"-, organizado por Carlos Rennó, com produção musical de Cid Campos. As faixas são trechos musicados do poema e cantados por Gal Costa, Gilberto Gil, Arnaldo Antunes, Elba Ramalho, Cássia Eller, Arnaldo Antunes etc.
Não há nas obras nenhuma polêmica explícita, nem mesmo referências senão indiretas ao tropicalismo.
Caetano Veloso faz uma elogiosa nota introdutória à obra, ressaltando sua intenção de trazer o épico teológico hindu para perto da poesia popular brasileira.
Sentado numa cama do quarto da chácara em que está hospedado em Itaboraí (RJ), sob um cartaz em que a figura andrógina do próprio Krishna aparece em sua forma humana, Duarte, 58 anos, pernas e mãos cruzadas, diz que pensou em dar à obra o título de "Tropicália Transcendental", como alusão ao lado místico e metafísico do movimento, segundo ele estigmatizado no livro de Caetano.
À afirmação existente no "Verdade Tropical" -a partir de idéias do compositor Antonio Cícero- de que o misticismo seria uma maneira de negar a fatalidade e a causalidade do real, Duarte responde no sentido oposto: "Existe no racionalismo uma necessidade de negar a sobrenaturalidade. Sua razão não alcança essas forças e eles as negam, as eliminam do real".
Com "Gita", Duarte rompe uma corrente de "poemas não editados, romances queimados e textos inescritos" (como diz Caetano a respeito da produção não publicada do autor). Rompe-se também a maldição de que Duarte seria mais um artista no ser do que no fazer.
"Baghavad Gita" é a narração do diálogo entre o guerreiro Árjuna e o deus Krishna previamente a uma terrível batalha fratricida, talvez a mais sanguinária delas. O guerreiro vive um dilema sobre participar ou não do combate. Os temas do diálogo vão desde a necessidade e a justificativa para a ação até as leis do funcionamento do universo e as relações entre o humano e o divino. A partir daí, discutem-se as oposições entre o ascetismo e a legitimidade da participação no mundo temporal, a salvação por meio do "conhecimento", ou seja, da descoberta da suprema verdade metafísica.
Duarte vê sua religiosidade como uma consequência natural da opção tropicalista. "Naquela época tomamos uma atitude aparentemente irracional, considerada cínica e leviana, de incorporação de manifestações do pop internacional, da cultura de massas como representação poética, que foram de início rejeitadas como inadmissíveis. Também agora encaro o espaço místico como um ponto de fuga, algo de fora do plano da razão, a partir do qual é possível ter uma nova abordagem do chamado real. Mas, como devoto, meu interesse maior é no ponto de fuga, em suas características e emanações transcendentes".
As 700 estrofes de "Gita" integram o "Mahabharata", poema épico de 250 mil versos, que conta a história da Índia e, acredita-se, foi escrito há cerca de 5.000 anos, embora já viesse sendo transmitido oralmente há bem mais tempo.
Duarte adianta na introdução do livro que seu trabalho de tradução tomou partidos, é resultado da devoção religiosa e poética. A versão usa quase sempre o verso em heptassílabos, a redondilha maior, a forma mais comum na literatura de cordel, na poesia e na música popular brasileiras.
Aspectos humanizadores da divindade são enfatizados. Krishna aparece também como uma entidade terrena, quase monoteística. Como que a marcar posição, a obra de Duarte parece querer tudo menos repetir o estereótipo contemplativo e inerte dos hinduístas, voltados unicamente para uma passiva salvação da alma:
"É que sou um hare krishna de esquerda", diz este baiano de Ubaíra, enquanto balança o terço indiano, para ajudar na concentração nos mantras e "apaziguar o ritmo da minha mente".



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