UOL


São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"BOA COMPANHIA"

Contos traçam frustração cotidiana

DO CRÍTICO DA FOLHA

A menina diz à mãe que fora agredida por um coleguinha de escola. A mãe esbraveja, conta à família, promete providências. Noutro dia, a garota expõe mais atrocidades perpetradas por Wallace, o agressor. Beliscões nas nádegas, inclusive. É demais.
Os pais falam com a diretora do colégio. Exigem uma atitude. A diretora ouve calmamente. Pede para ver as supostas lesões. Os pais procuram, mas nada acham. "Wallace?", a diretora se pergunta; e declara: "Não temos nenhum aluno com esse nome...".
A situação narrada no conto "Wallace", de Lívia Garcia-Roza, revela um dos temas comuns às histórias de "Boa Companhia": os limites imprecisos entre o que é o que gostaríamos que fosse.
Em "O Cavalo Imaginário", de Moacyr Scliar, colunista da Folha, um jovem humilde cria um cavalo de mentira, para emular seus colegas, donos de puros sangues. Em "A Vida de um Homem Normal", Bernardo Carvalho, também colunista da Folha, nos traz um personagem que ouve vozes, mas não as alardeia. Em "Doutor", de Luiz Schwarcz, o sonho de uma mãe de ver seu filho tornar-se médico precisa ser adaptado à realidade.
Este último conto oferece uma ponte para entendermos melhor o mecanismo por trás do fabrico da ilusão. Como a mãe de "Doutor", muitos personagens cercam-se de aspirações irrealistas para escapar a um cotidiano que lhes é mesquinho; mergulham na imaginação para fugir do mundo.
A adolescente de "O Meu Quarto", de Ana Miranda, por exemplo, refugia-se entre os objetos queridos de seu quarto. O psicanalista de "O Embrulho da Carne", de Sérgio Sant'Anna, acusa a paciente de estar usando a loucura "para se defender do mundo".
A fuga à realidade não é tema incomum na literatura, bastando lembrarmos de "Madame Bovary", onde o choque entre a expectativa de Emma por uma vida glamourosa e o cotidiano acanhado conduz a resultados trágicos. Passados quase 150 anos da publicação do livro de Flaubert, a sociedade burguesa, hoje globalizada, parece não ter logrado munir seus constituintes dos meios necessários para a superação das frustrações por ela mesma geradas.
Como sói ocorrer em coletâneas, o conjunto é irregular. Há histórias medianas e outras boas, como a de Bernardo Carvalho, Garcia-Roza e Ana Miranda. Duas parecem excepcionais: a de Heloisa Seixas e a de Amilcar Bettega Barbosa. (MARCELO PEN)


Boa Companhia
   
Autores: vários
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 21 (126 págs.)


Texto Anterior: Obra inicia série de "safadezas" da literatura
Próximo Texto: Teatro: Montagem altera percepção da realidade
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.