São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Impasse da consciência

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Maurice Blanchot, 94, faz parte de um outro tempo. E de um mundo mais inteligente e interessante, onde ainda era possível dizer, sem provocar maiores indignações ou comoções populistas, que a verdade da literatura vem da diferença e da estranheza, nunca da adequação às convenções e às demandas. Um mundo em que "literatura de mercado" era, antes de mais nada, uma expressão contraditória.
"A Conversa Infinita", que a editora Escuta decidiu dividir em três volumes por razões comerciais, é um dos ensaios mais representativos do pensamento radical desse escritor francês, que também é autor de ficção ("Thomas, L'Obscur", "Le Très-Haut" etc.). A primeira parte do livro ("A Palavra Plural"), lançada agora em português, fala da "palavra como desvio", ou seja, da diferença que permite à literatura reter em si uma parte da condição humana que o registro discursivo -as convenções da linguagem da comunicação e do diálogo cotidiano- tenta encobrir.
Blanchot despreza alguns dos lugares-comuns mais disseminados entre os próprios escritores. O que o interessa na literatura não é a expressão de uma interioridade, ou o mundo subjetivo do autor, muito menos o texto que pretende dar uma visão da realidade, mas a capacidade que a palavra literária tem de escapar desses vícios da linguagem que impedem o homem de confrontar a sua verdadeira condição e a morte.
A literatura, sendo movimento sem fim, desejo e busca permanentes (mais errância, crise e interrogação do que resposta), seria capaz de chamar o desconhecido sem ter que nomeá-lo, e assim tocá-lo de alguma forma sem cair no paradoxo de torná-lo conhecido, refém das convenções da linguagem: "Quando eu falo, reconheço que somente existe palavra porque o que "é" desapareceu naquilo que o nomeia, fulminado para tornar-se a realidade do nome".
Para Blanchot, nomear é a morte das coisas, a impossibilidade de confrontar o desconhecido que é o próprio homem, e a palavra literária seria uma forma de escapar desse círculo ao levar em conta e afirmar o seu próprio vazio, a sua descontinuidade, os paradoxos e contradições que a linguagem de uso corrente tenta excluir e dissimular. O desconhecido só poderia ser concebido por uma linguagem que é posta em jogo.
Não é um pensamento fácil, justamente por refutar os clichês com que nos comunicamos na busca de alguma segurança e paz de espírito: "Invisivelmente, a escrita é convocada a desfazer o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantemo-nos, nós que dele dispomos, confortavelmente instalados. Escrever, desse ponto de vista, é a maior violência que existe, pois transgride a Lei, toda lei e sua própria lei".
Num belo texto sobre Blanchot intitulado "La Pensée du Dehors" ("O Pensamento do Exterior" ou "O Pensamento de Fora"), Michel Foucault diz: "Na verdade, o acontecimento que fez nascer o que em sentido estrito chamamos "literatura" só é da ordem da interiorização para um olhar superficial; trata-se muito mais de uma passagem ao "exterior': a linguagem escapa ao modo de ser do discurso -isto é, à dinastia da representação-, (...) o ser da linguagem só aparece por si mesmo no desaparecimento do sujeito".
O pensamento de Blanchot está no centro da literatura moderna. No entanto, se ele pôde surgir graças a obras radicais, como as de Sade, Nietzsche, Mallarmé, Joyce, Kafka e Beckett, o mesmo não pode ser dito sobre os textos literários posteriores cuja consciência ele provocou. Na sua radicalidade, o pensamento de Blanchot pôs a literatura diante de um beco sem saída e acabou sendo tomado por alguns, sobretudo na França, como modelo a ser seguido.
A força inovadora e avassaladora desse pensamento engendrou, paradoxalmente, algumas distorções ao tornar-se consciência da literatura moderna. Decorre daí uma subliteratura automática, fraca, ensimesmada e ilustrativa desse pensamento. Pois bastou ao escritor ter a consciência prévia dessa teoria para que a busca do desconhecido que ela lhe atribuía acabasse reduzida a um cacoete, e o que tinha sido revelação se tornasse programa.


A Conversa Infinita 1 - A Palavra Plural
L'Entretien Infini
    
Autor: Maurice Blanchot
Tradutor: Aurélio Guerra Neto
Editora: Escuta
Preço: R$ 21,30 (142 págs.)




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