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RESENHA DA SEMANA
Impasse da consciência
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Maurice Blanchot, 94, faz
parte de um outro tempo.
E de um mundo mais inteligente
e interessante, onde ainda era
possível dizer, sem provocar
maiores indignações ou comoções populistas, que a verdade
da literatura vem da diferença e
da estranheza, nunca da adequação às convenções e às demandas. Um mundo em que "literatura de mercado" era, antes
de mais nada, uma expressão
contraditória.
"A Conversa Infinita", que a
editora Escuta decidiu dividir
em três volumes por razões comerciais, é um dos ensaios mais
representativos do pensamento
radical desse escritor francês,
que também é autor de ficção
("Thomas, L'Obscur", "Le Très-Haut" etc.). A primeira parte do
livro ("A Palavra Plural"), lançada agora em português, fala da
"palavra como desvio", ou seja,
da diferença que permite à literatura reter em si uma parte da
condição humana que o registro
discursivo -as convenções da
linguagem da comunicação e do
diálogo cotidiano- tenta encobrir.
Blanchot despreza alguns dos
lugares-comuns mais disseminados entre os próprios escritores. O que o interessa na literatura não é a expressão de uma interioridade, ou o mundo subjetivo do autor, muito menos o
texto que pretende dar uma visão da realidade, mas a capacidade que a palavra literária tem
de escapar desses vícios da linguagem que impedem o homem de confrontar a sua verdadeira condição e a morte.
A literatura, sendo movimento sem fim, desejo e busca permanentes (mais errância, crise e
interrogação do que resposta),
seria capaz de chamar o desconhecido sem ter que nomeá-lo, e
assim tocá-lo de alguma forma
sem cair no paradoxo de torná-lo conhecido, refém das convenções da linguagem: "Quando eu
falo, reconheço que somente
existe palavra porque o que "é"
desapareceu naquilo que o nomeia, fulminado para tornar-se
a realidade do nome".
Para Blanchot, nomear é a
morte das coisas, a impossibilidade de confrontar o desconhecido que é o próprio homem, e a
palavra literária seria uma forma de escapar desse círculo ao
levar em conta e afirmar o seu
próprio vazio, a sua descontinuidade, os paradoxos e contradições que a linguagem de uso
corrente tenta excluir e dissimular. O desconhecido só poderia
ser concebido por uma linguagem que é posta em jogo.
Não é um pensamento fácil,
justamente por refutar os clichês
com que nos comunicamos na
busca de alguma segurança e
paz de espírito: "Invisivelmente,
a escrita é convocada a desfazer
o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos,
mantemo-nos, nós que dele dispomos, confortavelmente instalados. Escrever, desse ponto de
vista, é a maior violência que
existe, pois transgride a Lei, toda
lei e sua própria lei".
Num belo texto sobre Blanchot intitulado "La Pensée du
Dehors" ("O Pensamento do
Exterior" ou "O Pensamento de
Fora"), Michel Foucault diz: "Na
verdade, o acontecimento que
fez nascer o que em sentido estrito chamamos "literatura" só é
da ordem da interiorização para
um olhar superficial; trata-se
muito mais de uma passagem ao
"exterior': a linguagem escapa ao
modo de ser do discurso -isto
é, à dinastia da representação-,
(...) o ser da linguagem só aparece por si mesmo no desaparecimento do sujeito".
O pensamento de Blanchot está no centro da literatura moderna. No entanto, se ele pôde
surgir graças a obras radicais,
como as de Sade, Nietzsche, Mallarmé, Joyce, Kafka e Beckett, o
mesmo não pode ser dito sobre
os textos literários posteriores
cuja consciência ele provocou.
Na sua radicalidade, o pensamento de Blanchot pôs a literatura diante de um beco sem saída e acabou sendo tomado por
alguns, sobretudo na França, como modelo a ser seguido.
A força inovadora e avassaladora desse pensamento engendrou, paradoxalmente, algumas
distorções ao tornar-se consciência da literatura moderna.
Decorre daí uma subliteratura
automática, fraca, ensimesmada
e ilustrativa desse pensamento.
Pois bastou ao escritor ter a
consciência prévia dessa teoria
para que a busca do desconhecido que ela lhe atribuía acabasse
reduzida a um cacoete, e o que
tinha sido revelação se tornasse
programa.
A Conversa Infinita 1 - A
Palavra Plural
L'Entretien Infini
Autor: Maurice Blanchot
Tradutor: Aurélio Guerra Neto
Editora: Escuta
Preço: R$ 21,30 (142 págs.)
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