São Paulo, segunda-feira, 12 de junho de 2000


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RAP NACIONAL
Colegas de cela no maior presídio da América Latina lançam CD produzido por expoentes do estilo no país
Do Carandiru, 509-E professa "Provérbios 13"

MARCELO VALLETTA
DA REDAÇÃO

"Aquela ali é a nossa cela. Ali é a 509-E", diz o rapper Dexter, 26, ao apontar para uma janela do pavilhão 7 da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, o maior presídio da América Latina.
O número do cárcere serviu de nome para o grupo de rap que Dexter formou com Afro-X, 26, seu companheiro de cela. O primeiro CD da dupla, "Provérbios 13", está inaugurando o selo Só Rap, da gravadora Atração.
Não é a primeira vez que um grupo de rap se forma no Carandiru -em 98, o grupo Detentos do Rap lançou o CD "Apologia ao Crime". O diferencial do primeiro trabalho do 509-E é o time de produtores que congrega.
Os responsáveis pela produção das 12 faixas de "Provérbios 13" fazem parte da nata do rap nacional: Mano Brown e Edi Rock, integrantes do maior grupo do gênero no Brasil, os Racionais MCs; o veterano DJ Hum, que faz dupla com o rapper Thaíde; e o carioca MV Bill. Participou também Zé Gonzalez, DJ do Planet Hemp, que criou as bases das cinco músicas produzidas por Brown.
"É um time que nunca foi reunido antes", salienta Dexter, enquanto come um sanduíche no coreto da Divinéia, uma espécie de pátio de entrada para os pavilhões do Carandiru.
Os dois integrantes do 509-E, oriundos da periferia de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, fizeram parte de grupos de rap durante os anos 90. Foi quando conheceram os Racionais e outros artistas da periferia paulistana. Em meados da década, foram presos por assalto e acabaram se encontrando no presídio em 98.
"Quando formamos o 509-E, foi um momento crucial para a nossa recuperação", diz Dexter. "A gente não visa o dinheiro, mas a recuperação por meio do rap, revolucionário e educativo."
"E o nome do disco fala disso. Os "Provérbios" de Salomão nos dão conselhos, fortalecem nossa recuperação", explica Afro-X.
"Mas a gente não se esconde atrás da Bíblia não", afirma Dexter. "Aqui no Carandiru, tem gente que finge que é crente só pra não ir pro pavilhão 5."

Confiança e desconfiança
Como não podia deixar de ser, o mote do CD é a vida na cadeia. A primeira faixa, "Confiança e Desconfiança", traz a representação de um diálogo entre funcionários do presídio, que se perguntam se o projeto musical dos detentos não seria um "esquema de fuga".
Outras faces do cotidiano do Carandiru são enfocadas pelas faixas do CD. Desde a chegada à prisão, descrita na música "Triagem", em ritmo seco e pesado, até o envio de uma carta a uma amiga, em "Saudades Mil", que evoca a black music dos anos 70. Só não há, ainda, uma música contando o dia da libertação -os rappers poderão ser soltos apenas a partir do ano que vem.

Engatilhados para gravar
O disco de estréia do grupo foi gravado em quatro dias, em três estúdios diferentes. Eles saíam de noite, com escolta de três guardas.
"A gente apresentou as letras pros manos, eles trouxeram as bases e a gente passava um pano", diz Dexter, explicando o processo de ensaio do grupo.
"Gravamos três músicas em poucas horas, das 20h às 6h", contou Edi Rock à Folha, em entrevista por telefone. "Como já tinha esse ensaio, eles não vacilaram, já chegaram engatilhados."
O grande número de produtores ajudou a dar variedade musical ao CD. "Foi essa a intenção, a gente quis vários estilos diferentes", diz Afro-X. "A gente cresceu ouvindo black: Jorge Ben, Tim Maia, Hyldon, Cassiano, Gerson "King" Combo", completa.
"A gente respeita o pessoal da velha guarda, inclusive o Roberto Carlos", diz Dexter. "Ele se espelhava em James Brown, Funkadelic, Isaac Hayes..."
Mas as influências da dupla não são apenas musicais. "Para ser um rapper, é preciso se informar, ter uma base teórica", afirma Afro-X. "Tem de saber quem foram Malcolm X, os Black Panthers, Rubin "Hurricane" Carter, Nelson Mandela. Nosso povo não viveu só de derrotas", diz, enquanto mostra com orgulho a tatuagem com o nome de guerra no braço direito.
Para o futuro, os rappers pretendem não apenas continuar com a carreira musical, mas também dar o exemplo para os garotos da periferia. "É um sonho que está se realizando", diz Afro-X, sorrindo, enquanto autografa o encarte do CD com as palavras "Paz, saúde e vitória...".



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