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"JANGO, UM PERFIL"
Masoquismo e golpe de Estado circundam João Goulart
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
O leitor é advertido que o
lance fundamental deste livro é ater-se aos fatos, à narrativa
cronológica dos fatos; mas isso
não exclui que o autor tenha uma
interpretação, um juízo de valor
sobre o que significou João Goulart na história do Brasil.
Evidentemente, é simplismo
maniqueísta colocar a questão assim: a favor ou contra a queda do
ex-presidente? O problema, no
entanto, é que um balanço rigoroso do que representou João Goulart nunca é inocente nem neutro
nem imparcial. Trata-se de um tema explosivo que envolve os impasses da civilização brasileira.
E mais: qualquer que seja a interpretação, isso acaba por trazer
uma avaliação sobre o presente
como história, posto que a derrubada de Jango em 1964 não deixou de determinar a atualidade
brasileira para além da relação da
história com o historiador.
A tese do livro é, para usar a linguagem da direita, que Jango estava a fim de dar um autogolpe,
ou seja, queria continuar no poder, alterando a Constituição com
direito à reeleição, ou valendo-se
de uma quartelada. Essa tese acerca do Jango golpista foi combatida e negada várias vezes com veemência por Darcy Ribeiro (além
de Nelson Werneck Sodré, que
não é citado nem uma única vez);
aliás, este livro apresenta uma
versão antípoda do ex-chefe da
Casa Civil de Jango, que escreveu
dezenas e dezenas de textos sobre
a derrota do janguismo. Golpe é
coisa da direita, não da esquerda.
No cotejo (que já fora feito por
Paulo Schelling) entre Jango e Brizola, o autor mostra que o primeiro era pusilânime, vacilão, fraco,
enquanto o segundo tinha clareza
e pulso firme, sendo coerente e
corajoso; porém, ao deixar de lado a tramóia do imperialismo nos
idos de março de 64, o livro se
afasta de uma perspectiva brizolista (o grupo dos 11 é visto sob o
ângulo da "tradição cartorial"),
afastando-se do que Moriz Bandeira escreveu sobre as contradições do governo João Goulart.
Embora o embaixador norte-americano Lincoln Gordon seja
referido de maneira anedótica e
respeitosa, a questão do imperialismo está inteiramente alijada, de
modo que se trata menos de uma
narrativa profunda do que de
uma descrição perfunctória. Os
nexos causais estão ausentes.
Os dois motivos que desencadearam o golpe -a reforma agrária e a lei da remessa de lucros-
são considerados desprovidos de
qualquer relevância. A chamada
aliança do latifúndio com o imperialismo (o Brasil como grande
exportador de capitais) vira conversa para boi dormir. Mas sem
isso é difícil explicar a maior rasteira que um político levou na história do Brasil.
"Ópera bufa", professor? Aí pegou pesado. E, detalhe, essa rasteira continua mesmo depois de
Jango morto, em 1976. Rasteira
póstuma. O único presidente do
Brasil que morreu no exílio. Convenhamos que isso não é uma experiência agradável.
Afirmar que Jango foi um "homem de sorte" porque não retornou do exílio, de modo que não
vivenciou de novo um fracasso,
revela que o autor prefere as novas lideranças políticas pós-golpe
de 64. Se a isso não tivesse seguido
a supressão das liberdades democráticas, bem que Jango poderia
ter caído. Numa boa. Bem feito! A
culpa é de Getúlio Vargas que foi
lhe dar colher de chá e biscoitinho
em São Borja.
Essa é a moral deste livro anti-Jango, que, aliás, nisso não apresenta absolutamente nenhuma
novidade, pois já se tornou lugar
comum da ideologia hegemônica
no Brasil das últimas décadas: dizer que Jango caiu por incompetência ou masoquismo, mas não
por causa do imperialismo americano. O ideal seria cortá-lo, mas
não interromper a democracia.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é
professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa
Amarela)
Jango, um Perfil (1945-1964)
Autor: Marco Antonio Villa
Editora: Globo
Quanto: R$ 38 (288 págs.)
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