São Paulo, sábado, 12 de junho de 2004

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"ÓDIO, AMIZADE, NAMORO, AMOR, CASAMENTO"

Alice Munro faz retrato de mulheres em movimento

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

A canadense Alice Munro, 72, é tida em seu país e nos EUA como uma das grandes contistas de hoje, e seu livro mais recente (publicado no Canadá em 2001 e o primeiro a chegar ao Brasil) mostra por quê.
O título "Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento", extraído do primeiro dos nove contos do volume, pode sugerir a idéia de um livro de auto-ajuda ou de "histórias para moças". Nada mais falso. A sucessão de substantivos abstratos refere-se, na verdade, a uma brincadeira de meninas, mediante a qual elas "adivinham" qual será o futuro de uma delas com um determinado garoto. O que há de comovente nisso é a tola pretensão de prever o destino com a ajuda do acaso.
Os contos de Munro acionam, de algum modo, esse tipo de jogo: o drama e o humor das histórias brotam justamente do desajuste entre o mundo que os personagens constroem idealmente e os eventos que lhes toca viver.
Suas protagonistas são sempre mulheres, mas de todas as idades, graus de instrução e condições sociais. O que as une é o fato de serem colhidas pela narrativa num momento de transição, quase que no contrapé, de um jeito que acaba por revelar o sentido -ou, antes, os sentidos- de toda a sua trajetória de vida.
Em "Ponte Flutuante", por exemplo, Jinny, uma quarentona que acaba de receber do médico a notícia de que seu câncer não é tão grave quanto parecia, deixa-se seduzir por um adolescente que acabou de conhecer, enquanto seu marido, que ignora as novas notícias médicas, parece comodamente adaptado à idéia da doença terminal.
A sutileza do estilo de Munro consiste, entre outras coisas, em dar ao leitor a impressão de que tudo no destino de suas protagonistas está em aberto -até mesmo para ela própria, autora.

Zonas de sombra
Como a maioria dos relatos cobre períodos longos de tempo, há sempre lapsos, zonas de sombra, lembranças de que as próprias personagens não estão bem certas. O passado é uma construção permanente, assim como o presente e o futuro.
Um exemplo concreto disso está no conto "O que É Lembrado", talvez o melhor do livro, em que uma mulher casada tem um breve, inesperado e único caso extraconjugal -e passa o resto da vida a desdobrá-lo mentalmente, a reelaborá-lo de modo a fazê-lo cumprir um papel no seu equilíbrio doméstico.
Não é por acaso que, nesse mesmo conto, dois personagens discutem o romance "Pais e Filhos", de Ivan Turguêniev.
A exemplo do autor russo, Alice Munro também se preocupa mais com os personagens do que com o enredo.
Melhor dizendo: é como se o enredo, a trama, fosse apenas uma maneira de testar as potencialidades psicológicas e morais dos personagens, de revelá-los "em situação".
Também como Turguêniev, Munro não pretende esgotar suas criaturas, iluminá-las por inteiro. Restam sempre aspectos obscuros, irredutíveis, que fazem delas seres ao mesmo tempo palpáveis e fugidios.
Três contos são narrados em primeira pessoa, num enganoso tom memorialístico. No melhor deles, "Mobília de Família", o passado da narradora vai sendo modificado à medida que ela junta novas informações a respeito de uma prima de seu pai, a jornalista Alfrida, uma espécie de ovelha negra da família.
Aqui, como nos outros relatos do volume, as reviravoltas e revelações são narradas sem alarde, como que em surdina, com o tom sereno e distanciado de quem, na pele ou na imaginação, já viveu muitas vidas.


Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento
    
Autora: Alice Munro
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Globo
Quanto: R$ 46 (359 págs.)



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