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"ÓDIO, AMIZADE, NAMORO, AMOR, CASAMENTO"
Alice Munro faz retrato de mulheres em movimento
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
A canadense Alice Munro,
72, é tida em seu país e nos
EUA como uma das grandes contistas de hoje, e seu livro mais recente (publicado no Canadá em
2001 e o primeiro a chegar ao Brasil) mostra por quê.
O título "Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento", extraído do primeiro dos nove contos
do volume, pode sugerir a idéia de
um livro de auto-ajuda ou de "histórias para moças". Nada mais
falso. A sucessão de substantivos
abstratos refere-se, na verdade, a
uma brincadeira de meninas, mediante a qual elas "adivinham"
qual será o futuro de uma delas
com um determinado garoto. O
que há de comovente nisso é a tola
pretensão de prever o destino
com a ajuda do acaso.
Os contos de Munro acionam,
de algum modo, esse tipo de jogo:
o drama e o humor das histórias
brotam justamente do desajuste
entre o mundo que os personagens constroem idealmente e os
eventos que lhes toca viver.
Suas protagonistas são sempre
mulheres, mas de todas as idades,
graus de instrução e condições sociais. O que as une é o fato de serem colhidas pela narrativa num
momento de transição, quase que
no contrapé, de um jeito que acaba por revelar o sentido -ou, antes, os sentidos- de toda a sua
trajetória de vida.
Em "Ponte Flutuante", por
exemplo, Jinny, uma quarentona
que acaba de receber do médico a
notícia de que seu câncer não é
tão grave quanto parecia, deixa-se
seduzir por um adolescente que
acabou de conhecer, enquanto
seu marido, que ignora as novas
notícias médicas, parece comodamente adaptado à idéia da doença
terminal.
A sutileza do estilo de Munro
consiste, entre outras coisas, em
dar ao leitor a impressão de que
tudo no destino de suas protagonistas está em aberto -até mesmo para ela própria, autora.
Zonas de sombra
Como a maioria dos relatos cobre períodos longos de tempo, há
sempre lapsos, zonas de sombra,
lembranças de que as próprias
personagens não estão bem certas. O passado é uma construção
permanente, assim como o presente e o futuro.
Um exemplo concreto disso está no conto "O que É Lembrado",
talvez o melhor do livro, em que
uma mulher casada tem um breve, inesperado e único caso extraconjugal -e passa o resto da vida
a desdobrá-lo mentalmente, a
reelaborá-lo de modo a fazê-lo
cumprir um papel no seu equilíbrio doméstico.
Não é por acaso que, nesse mesmo conto, dois personagens discutem o romance "Pais e Filhos",
de Ivan Turguêniev.
A exemplo do autor russo, Alice
Munro também se preocupa mais
com os personagens do que com
o enredo.
Melhor dizendo: é como se o
enredo, a trama, fosse apenas
uma maneira de testar as potencialidades psicológicas e morais
dos personagens, de revelá-los
"em situação".
Também como Turguêniev,
Munro não pretende esgotar suas
criaturas, iluminá-las por inteiro.
Restam sempre aspectos obscuros, irredutíveis, que fazem delas
seres ao mesmo tempo palpáveis
e fugidios.
Três contos são narrados em
primeira pessoa, num enganoso
tom memorialístico. No melhor
deles, "Mobília de Família", o passado da narradora vai sendo modificado à medida que ela junta
novas informações a respeito de
uma prima de seu pai, a jornalista
Alfrida, uma espécie de ovelha negra da família.
Aqui, como nos outros relatos
do volume, as reviravoltas e revelações são narradas sem alarde,
como que em surdina, com o tom
sereno e distanciado de quem, na
pele ou na imaginação, já viveu
muitas vidas.
Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento
Autora: Alice Munro
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Globo
Quanto: R$ 46 (359 págs.)
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