São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

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ANÁLISE

Autor era uma exceção na tradição do país

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Juan José Saer era uma exceção na tradição literária argentina. As letras do país vizinho sempre estiveram impregnadas pelo nacionalismo, para o bem e para o mal. De José Hernandez ("Martín Fierro") a Tomás Eloy Martínez ("O Romance de Perón"). De Sarmiento ("Facundo") a Ricardo Piglia ("Respiración Artificial"), a busca por uma "argentinidade" na forma de narrar e na seleção de temas é determinante. Assim como uma necessidade, não raro obsessiva, em compreender "quem somos", "o que é a Argentina", e, em casos mais extremos, "como nos vêem?" -tome-se como exemplo o sucesso estrondoso do comercial "O Atroz Encanto de Ser Argentinos" (2002), de Marcos Aguinis. Mesmo a obra internacional de Borges pode ser compreendida como uma mutação tipicamente portenha das vanguardas européias e do realismo mágico.
Apesar de beber na mesma fonte, Saer destoava desse quadro. Talvez por ter nascido longe da capital, na Província de Santa Fé, e se auto-exilado nos anos 60 na França, seu modo de compreender a literatura era profundamente universal. Assim como, ao fazê-la, refletia um atordoamento constante com a condição humana, como se pode notar em "Nadie Nada Nunca" ou "Unidad de Lugar". Já seu texto fundamentava-se na fluidez de uma narrativa poética, marcado por frases longas e quase musicais.
Em um de seus trabalhos mais interessantes, "O Enteado", Saer investigava as raízes da identidade americana. Aficionado pelos clássicos, também foi um crítico da literatura atual. Em ensaios, comentava os efeitos da cultura de massas e da indústria do livro na produção do romance contemporâneo, que, na sua opinião, resultava de um lento processo de fragmentação iniciado no passado, a partir das epopéias.
Do ponto de vista político, se dizia um socialista, ou um "alfonsinista de esquerda". Ainda assim, promovia tanto a crítica à esquerda tradicional como ao oportunismo no uso da imagem de Perón pelos políticos atuais.
Preocupava-o, mais que as conseqüências políticas das constantes crises argentinas, seus efeitos no imaginário da sociedade. Ao comentar, por exemplo, em entrevista à Folha, a efervescência que o cinema argentino passou a viver após o "estallido" (queda do governo De la Rúa, em dezembro de 2001), Saer utilizou a imagem de um funeral. "Essa efervescência cultural se parece com o mito de que a potência sexual e a libido costumam se acentuar em velórios, porque, quando desaparece um membro de uma espécie, é preciso refazer outro imediatamente. É o reflexo da falência do país", disse, num comentário que destoava da euforia com que a tal "buena onda" nacional era celebrada.
Saer era, ao lado de Ricardo Piglia, o mais importante escritor argentino contemporâneo. Com sua morte, a Argentina perde um autor que, sem se desfazer da tradição literária nacional, a olhava de fora e a desafiava. O mesmo olhar crítico que lançava também ao passado político de seu país e fazia cobranças à sociedade atual.


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