São Paulo, sexta, 12 de junho de 1998

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Mafalda estava certa


Quino, criador da personagem que não aparece em tiras há 25 anos, diz que mundo hoje é pior e que a garota, hoje, estaria fazendo as mesmas críticas


AUGUSTO GAZIR
de Buenos Aires

Mafalda contestou, questionou, mas sem muitos resultados. Para Quino, criador da personagem que não aparece em tiras há 25 anos, o mundo hoje é pior do que aquele que angustiava a menina. "Hoje, não há ilusões políticas, nem ideais, nem nada. Mafalda faria as mesmas críticas", afirma Quino à Folha, no apartamento onde mora e trabalha, no centro de Buenos Aires.
"As críticas de Mafalda não significavam pessimismo, mas uma tentativa para que algo mude. No fundo, significavam otimismo. Sei que para muita gente Mafalda serviu para algo, pelo menos", completa o desenhista.
Quino economiza palavras ao comentar sobre a personagem que virou a marca de sua obra. Ele descarta comemorações pelos 25 anos sem Mafalda.
"Para mim, Mafalda é igual às páginas de humor que tenho de entregar atualmente toda semana. Como um carpinteiro e seus móveis, fazer Mafalda ou outros desenhos é como fazer uma cadeira ou outra peça", resume Quino.
De setembro de 64 a junho de 73, Mafalda incomodou o mundo dos adultos em 2.000 tiras publicadas na Argentina. Depois, ela voltou a aparecer apenas em campanhas políticas e institucionais.
Guerra do Vietnã, armamento nuclear, racismo, Cortina de Ferro, nada escapava dos questionamentos da menina.
Quino criou Mafalda em 1962 para a campanha publicitária de uma fábrica de eletrodomésticos que se lançava no mercado. Os aparelhos Mansfield não vingaram na Argentina, mas a menina viraria atração na revista "Primera Plana".
"Sem a encomenda publicitária, não teria feito Mafalda. Seguiria tranquilinho com minhas páginas de humor", afirma Quino.
A personagem se espalhou pela América Latina, chegou à China, Espanha, Itália, França, Alemanha, Dinamarca, Finlândia. Nunca foi traduzida para o inglês.
O filósofo Umberto Eco, que prefaciou a primeira edição italiana de Mafalda (1969), a definiu como "heroína que reivindica o direito de seguir criança, sem se responsabilizar pelo universo adulterado dos pais".
Mesmo depois de 25 anos, coletâneas de Mafalda estão em todas as bancas e livrarias de Buenos Aires. Adultos e crianças colecionam bonecos e vestem camisetas da personagem e seus amigos.
"Mafalda é personagem de adultos. Foi uma surpresa a identificação das crianças", diz Joaquín Salvador Lavado, o Quino, que completa 66 anos em julho.
Casado há 38 anos, sem filhos, o desenhista perdeu a mãe quando tinha 13 anos. Três anos depois, morreu seu pai.
"Fui morar com um tio desenhista. Isso me influenciou na escolha da profissão", conta ele, que abandonou a escola de belas-artes para se tornar cartunista.
Tímido ("já fui mais, melhorei"), admirador do cineasta mexicano Arturo Ripstein, Quino tem uma página na revista dominical do jornal "Clarín".
O desenhista, que não usa cor, mostra humor duro e forte sobre desigualdades, instituições e comportamentos sociais. Família, casamento e religião são alvos da ironia de Quino.
A seguir os principais trechos da entrevista de Quino à Folha.

Folha- Por que parou de desenhar Mafalda?
Quino-
Nunca deixei de fazer as outras páginas de humor. Era muito trabalho. Depois de dez anos, era difícil não ser repetitivo. Não gostava da idéia de seguir com quadrinhos mais lidos por costume do que por interesse.
Folha - Como está o mundo hoje em relação ao que vivia Mafalda?
Quino -
Pior. Não foram solucionados nenhum dos problemas que se criticavam naquela época. No maio de 68 francês, parecia que tudo iria mudar para melhor, mas mudou para pior.
Folha - Concorda que Calvin, personagem de Bill Watterson, tem semelhanças com Mafalda?
Quino -
Os dois têm muito em comum. Essa relação de crítica com o mundo que o rodeia, com a família. O pai de Calvin parece bastante o pai de Mafalda.
Folha- Há um desenho seu em que o personagem passa sempre por ambientes quadrados e, no final, desenha um círculo. É assim que você se vê?
Quino -
Sim. Esse desenho é da época dos militares. Agora não são tantos quadrados, há hexágonos, pentágonos (risos).
Folha- Então a situação não está tão pior?
Quino -
Bom, está pior no sentido de que o poder econômico é muito mais potente que o político. Hoje, governa a economia, e não a política. Não há no mundo políticos que despertem entusiasmo. Nelson Mandela, Felipe González, todos foram para a direita, caíram nessa política neoliberal.
Folha- O sr. fez tiras de Mafalda para apoiar Raul Alfonsín (presidente argentino pela União Cívica Radical de 84 a 89). Arrepende-se?
Quino -
Não. Eu sempre fui muito politizado e antiperonista. Meus pais eram republicanos espanhóis, anti-racistas, antifascistas, anticlericais. Conheci o que foi o fascismo, e (Juan Domingo) Perón (general que governou a Argentina por três vezes neste século) é filho disso. Quando Mussolini fez a marcha sobre Roma, Perón estava na Itália. Gostou e tratou de implantar isso aqui. Não ensinou a classe trabalhadora a lutar por seus direitos, os deu por decreto.
Folha- Dos desenhistas atuais, quem te chama atenção?
Quino -
Não leio muito quadrinhos. Leio Sempé, desenhista francês. Leio Fontanarossa, Caloi (argentinos). Leio pouco os estrangeiros. No Brasil, conheço muitíssimo Ziraldo, seu menino maluquinho, Jaguar, mas não sei o que eles estão fazendo agora. É incrível a pouca comunicação entre os latino-americanos.
Folha - O Mercosul não ajuda?
Quino -
Creio que o Mercosul vai ajudar bastante, mas somente falam de comércio, vendas. Integração cultural tem pouca. Do cinema brasileiro, por exemplo, não chega nada aqui. Estamos nas mãos dos norte-americanos.
Folha - O sr. trata muito em seus desenhos da religião...
Quino -
Diverte-me muito. É um mundo mágico muito interessante, com influência na vida das pessoas. Leio muito o Antigo Testamento para tirar temas. Os assuntos não mudaram, mudaram as tecnologias. No Antigo Testamento, há a corrupção de políticos, o sexo.
Folha - Acredita em Deus?
Quino -
Posso crer em Deus como nos fantasmas, nos gnomos. É uma legenda interessante.



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