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"Linha de Sombra", romance do escritor viajante, é o volume da Biblioteca Folha que chega amanhã às bancas
Conrad assinala naufrágio na indiferença
DO COLUNISTA DA FOLHA
Joseph Conrad (1857-1924) é
talvez o último dentre os grandes
viajantes da literatura de língua
inglesa. Ao lado de Melville e Stevenson, esse polonês naturalizado
inglês deu colorações épicas a
uma era de comércio marítimo e
expansão colonial, transformando sua experiência na Marinha
Mercante em fonte para uma obra
que insufla na prosa européia "a
liberdade das grandes águas do
globo", conforme escreve em "A
Linha de Sombra".
Ao mesmo tempo, não faltam a
seus romances o caráter "problemático" dos heróis modernos e o
cenário asfixiante em que se cruzam culpas, aflições existenciais e
a perda do sentido da totalidade.
Nesse sentido, a obra de Conrad
está a meio caminho entre o século 19 e uma modernidade que se
inicia cheia de maus presságios;
entre o fascínio pelo desconhecido e a claustrofobia de um planeta
cujos mais recônditos cantos foram engolidos pela engrenagem
da história e pela presença destrutiva do humano -como podemos ler em "Lorde Jim" e "O Coração das Trevas".
Escrito durante a Primeira
Guerra Mundial, "A Linha de
Sombra" é o relato da transição de
um mundo idealmente organizado segundo leis arbitrárias (porém implacáveis) para a gratuidade que corresponde à nova condição do homem, ignorante de sua
origem, alienado de seus próprios
fins.
Há duas narrativas nesse romance: no plano factual, é a história de um marinheiro que, após
tomar a decisão de abandonar
uma carreira promissora, vê-se
premiado com o comando de um
navio; no plano alegórico, é uma
meditação sobre as idéias de graça
e acaso.
O anônimo herói de Conrad é o
narrador do romance, e essa opção estilística responde por boa
parte do encanto do livro, pois
cria uma defasagem entre o modo
irresponsável com que o jovem
marinheiro vê as coisas e a gravidade dos fatos que vão se desen-
rolando à sua volta. Ele permanece alheio e insolente, imerso na atmosfera preguiçosa do porto, enquanto nós percebemos que nuvens espessas se acumulam no
horizonte.
Decidido a voltar à sua terra natal, o marinheiro se instala na Capitania dos Portos de uma cidade
do golfo de Sião, onde encontra
dois oficiais que assumem um duplo papel no romance: o capitão
Giles, que o narrador toma inicialmente por um insano, mas cujos vaticínios acabam se confirmando de modo quase sobrenatural; e o capitão Ellis, descrito caricaturalmente como um Netuno
decaído e que será o "agente propiciador" que o reconduz a uma
vida de aventura. Essas duas personagens têm um papel-chave na
economia simbólica do romance:
são o destino ao qual o jovem marinheiro quisera abdicar e que
agora o seduz.
Ironias
A reconciliação do protagonista
com sua vocação marítima corresponde aos momentos mais líricos do romance, em que seu navio é descrito com volúpia fetichista. Mas é justamente aí que
começam as ironias de Conrad.
Pois, a partir do momento em que
o narrador se sente ungido pela
graça, começam os seus reveses.
A tripulação é vítima de uma
epidemia, e a embarcação fica semanas à deriva num oceano estagnado, assolado pelo fantasma
de seu ex-capitão, que morrera
numa fúria autodestrutiva: "A intensa solidão do mar agia como
veneno no meu cérebro. Quando
voltei os olhos para o navio, tive
uma visão mórbida dele como
uma sepultura flutuante".
Ao final, o navio e seu novo capitão escapam da tragédia assim
como entraram: por acaso, envolvidos pela espuma da gratuidade.
Para o romântico herói de Conrad, a "linha de sombra" marca a
passagem para uma maturidade
que implica a aceitação das contingências.
Para nós, leitores pós-românticos, ela assinala o naufrágio na indiferença do mundo, nessa
"imensidão que não aceita rótulos, não guarda memórias e não
contabiliza vidas".
(MANUEL DA COSTA PINTO)
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