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CONTARDO CALLIGARIS
"Ratatouille" e o desejo
Quando o caminho do nosso desejo parece árduo, devaneamos para não agir
CHEGAM AS férias escolares, e
os filmes para crianças invadem as salas.
Em "Harry Potter e a Ordem da
Fênix", pré-adolescentes e adolescentes encontrarão mais uma chance para sonhar que eles são órfãos,
bruxos e heróicos. Outros preferirão
o "Quarteto Fantástico e o Surfista
Prateado" e se imaginarão dotados
de poderes descomunais.
Nenhum problema: o devaneio,
além de ser prazeroso, é um dos caminhos pelos quais se enveredam e
se desenvolvem nossos desejos.
Mas devanear e desejar não são a
mesma coisa. Ao contrário, devanear pode ser um jeito de contornar
o nosso desejo, ou melhor, de celebrá-lo aparentemente (de olhos
abertos ou fechados), mas sem pagar o preço de sua realização e sem
correr o risco do malogro de nossos
esforços. Em suma, sobretudo
quando o caminho de nosso desejo
parece árduo e improvável, devaneamos para não agir.
Por isso, gostei de um outro filme
para crianças, que estreou na semana passada, "Ratatouille", de Brad
Bird. Essa animação, da Pixar, conta
a história de Remy, um rato que deseja ser chef de cozinha.
Se você fosse um rato e quisesse
ser chef, qualquer orientador lhe daria o conselho seguinte: esqueça e
sonhe com algo diferente. Afinal,
numa cozinha, não tem bicho menos indicado do que um rato. A vigilância sanitária fecha os restaurantes freqüentados por roedores; imagine o que ela faria com um restaurante capitaneado por um rato.
Sua família também faria o impossível para que você mudasse de
idéia. Rato pode comer restos e lixo
ou se insinuar nas despensas e dar
umas mordidas nos suprimentos,
mas cozinhar alimentos? Inventar
sublimes combinações de sabores?
Preparar amorosamente pratos tão
bonitos quanto suculentos? Isso,
convenhamos, não é coisa para rato.
Ora, Remy é cabeça dura. Ele está
disposto a desafiar a autoridade paterna, o conforto do clã e as convenções sociais, que lhe são francamente desfavoráveis. Não é porque sente
o apelo do sucesso ou imagina futuros lucrativos. É porque cozinhar,
para ele, significa dedicar-se ao que
ele sabe fazer, realizar quem ele é.
Tempo atrás, escrevi uma crônica
sobre a pouca ousadia dos desejos de
nossos jovens. Pois bem, como antídoto, prescrevo "Ratatouille" a todos, crianças e pais.
Quando pensamos no futuro de
nossos rebentos, temos, em geral,
uma visão limitada, preocupada
com a "possibilidade" de seus desejos. Na maioria dos casos, preferimos que eles tenham desejos
"plausíveis".
Parece lógico. Mas o problema é
que medimos esse "plausível" a partir da lição de nossos próprios limites ou fracassos. Isso, sem mencionar nossa vontade de guardar os filhos por perto e, eventualmente,
nossa inveja, que é inconfessável,
mas existe: nem sempre é fácil aceitar que nossos filhos inventem para
si uma vida melhor do que a nossa.
O rato que ambiciona ser chef de
cozinha é como o menino que pretende se tornar escritor, ator, violinista ou astronauta. Em geral, nos filhos que desejam uma vida que atropelaria a cerca de casa, a resistência
dos pais encoraja uma hipertrofia do
devaneio, que compensa o abandono dos sonhos "extravagantes". Este
é o recado: "Seja razoável em seus
desejos e solte-se no devaneio", "Resigne-se ao plausível e, em compensação, alugue DVDs ("Harry Potter"
ou o "Quarteto", por exemplo) para o
fim de semana". Os devaneios do domingo consolarão e inibirão o anseio "louco" de correr atrás de aspirações incomuns.
É possível entender "Ratatouille"
como uma apologia da sociedade
aberta, com oportunidades para todos: até um rato, com dedicação e
persistência, pode se tornar chef.
Mas, antes disso, o filme é uma homenagem à coragem de quem se autoriza a procurar a vida que ele quer.
A história de Remy não inspira devaneios de glória culinária. Se o filme nos faz sonhar, é com a galhardia
de quem não larga o osso (o queijo,
no caso) de seu desejo.
Mais uma coisa: "Ratatouille" é
também um excelente filme sobre a
arte de cozinhar.
É bem provável que, para quase
todos, a primeira gratificação tenha
sido oral. Afinal, o seio e a chupeta
nos foram impostos como respostas
universais a qualquer choro. O grande cozinheiro é aquele que, ao mesmo tempo, evoca em nós a lembrança das primeiras gratificações e nos
surpreende com uma experiência
sensorial inédita, inesperada. A cozinha é isto: a arte de nos dar a
satisfação mais primitiva de uma
maneira nova.
ccalligari@uol.com.br
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