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CONTARDO CALLIGARIS
Preâmbulo sobre o projeto de fiscalizar cinema e audiovisual
Na rua, esbarro nos restos de
um assalto. Na roda de curiosos que espera a chegada de
uma viatura da polícia, ferve um
debate. Há o partido da cesta básica: só voltaremos a ser donos de
nossas ruas quando, enfim, todos
tiverem o que comer. E há o partido da bala básica: não adianta
oferecer desculpas, criminoso é
criminoso, mate logo.
Conclusão majoritária: o problema é duplo, faltam as cestas e
faltam as balas nos revólveres da
polícia.
No dia seguinte, um amigo, que
se prepara para ser professor e está terminando seu estágio, comenta que uma coisa é óbvia em
matéria de disciplina: não adianta que um professor mande alunos para a diretoria a cada aula.
O que adianta é a qualidade do
ensino. A mesma turma é infernal
com um professor duríssimo, mas
pouco preparado, e ordeira com
outro professor, que nunca levanta a voz, mas transmite uma matéria interessante.
Relaciono a observação do amigo com a conversa na roda do assalto. Se tomarmos a disciplina
escolar como exemplo, podemos
perguntar: como é mantida a ordem que permite uma boa convivência social? A ameaça de expulsão e a merenda escolar são indispensáveis, mas não bastam. É necessário um outro tipo de alimento, mais "espiritual".
Olho pela minha janela: torres,
edifícios, casas, as antenas dos
prédios da Paulista. Somos muitos, diferentes e amontoados num
espaço exíguo. O que faz com que
a gente consiga conviver? Certo, a
polícia acaba reprimindo os que
são excluídos a tal ponto que lhes
falta o mínimo para viver (conviver é o último de seus problemas).
A polícia também cuida dos que
não são excluídos, mas não querem saber de convivência.
No entanto, não é por medo da
polícia que não enveneno o cachorro da vizinha, que late a noite inteira (o cachorro, não a vizinha). Não é por medo da cadeia
que trabalho em vez de inventar
um esquema fraudulento.
O que torna possível a convivência é outra coisa. É um patrimônio comum de coisas humildes
e sublimes, chatas e bonitas, banais e extraordinárias: vozes do
rádio, imagens da televisão, filmes, livros nas bibliotecas e nas livrarias, quadros nas salas e nas
galerias, jornais nas bancas, poesias e romances lidos ou que ninguém leu e ficam no fundo das
gavetas, orçamentos do mês, bate-papos noturnos de internautas,
conversas nos botecos, jogos de
cartas, torcidas de futebol e receitas de bolo.
Esse saco de gatos, que se chama
cultura, é também um saco de
normas, hábitos e costumes que
praticamos sem perceber. A sociedade é complexa, e ninguém saberia compilar o código dessas regras, mas, sem elas, viveríamos
num pesadelo, em que só a repressão nos defenderia da barbárie.
O professor que cativa seus alunos pela qualidade de sua aula
está cultivando-os, fornecendo-lhes o necessário para uma convivência social possível.
Em suma, conviver exige inclusão (pão para todos), repressão
normativa e riqueza de uma cultura compartilhada.
Os bons governos administram
a repressão necessária (que não
pode ficar nas mãos dos cidadãos), promovem a inclusão (tarefa assistencial) e, quanto à riqueza cultural, limitam-se a fomentá-la, pois sabem que é graças
a ela que a sociedade se auto-regula (com acento sobre "auto"), é
graças a ela que a ordem social
pode dispensar a repressão.
Essas funções do bom governo
devem ser mantidas separadas.
Por exemplo, não se recusa assistência médica a um preso nem
cesta básica à família indigente
de um assassino.
Ora, o Ministério da Cultura
acaba de formular um "rascunho" de lei para criar uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. O preâmbulo, que expõe os motivos do projeto, manifesta uma ótima compreensão da
função da cultura. É dito que o cinema e o audiovisual definem
"padrões de comportamento social" e são "a forma mais rápida e
eficiente" de circulação dos "valores éticos, históricos, políticos e sociais cultivados" pelo povo.
No entanto, uma vez reconhecida a relevância da cultura na vida da nação, o projeto quer demonstrar que é fundamental
criar "meios de controle e fiscalização das atividades cinematográficas e audiovisuais".
É como se um inspetor pedagógico, ao se dar conta de que, numa aula, os alunos se interessam
e se cultivam, confundisse fomentar com reprimir e anunciasse:
"Vocês gostaram muito das aulas
sobre a era Vargas; a partir de
amanhã, quem, numa redação,
disser que Vargas não era bonito
ficará sem caderno. Na recidiva,
tirarei a caneta também". Na aula seguinte, ninguém prestará
atenção. Na bagunça, só sobrará
o recurso da disciplina.
O redator do preâmbulo imagina que, controlando e fiscalizando a produção cultural, seja possível instalar nos cidadãos os hábitos e costumes desejados (por ele).
Parece pensar: "Se há normas, devo ser eu quem as dita".
Ora, como a história cansou de
mostrar, não se controla a produção cultural; quem quer controlá-la e fiscalizá-la só consegue torná-la clandestina ou matá-la.
Esse é o meu preâmbulo. O governo deixou 60 dias para que a
sociedade civil discuta o "rascunho". Como sou civil e faço parte
da sociedade, quero contribuir.
ccalligari@uol.com.br
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