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FERREIRA GULLAR
Inimigos íntimos
Dos três mosqueteiros do concretismo, Décio era o mais simpático, o mais dialogável
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DÉCIO PIGNATARI está fazendo
80 anos, quem diria! Em
1954, quando publiquei "A
Luta Corporal", éramos todos jovens e certamente nem pensávamos
em nos tornar os senhores idosos
que somos hoje. A Folha publicou
entrevista no sábado, dia 4, em
que, dizendo-se meu inimigo íntimo, acusou-me de ter entrado para
o PCB para fazer carreira. Bela carreira: clandestinidade, exílio e cadeia. Esperteza é comigo mesmo!
Dos três mosqueteiros do concretismo, Décio era o mais simpático, o mais dialogável, mas meu primeiro contato foi com Augusto de
Campos. É uma história conhecida, mas não de todos. Eles se haviam entusiasmado com "A Luta
Corporal" e me procuraram para,
juntos, iniciarmos um movimento
renovador da poesia brasileira.
Confesso que não cogitava isso e,
se desintegrara a linguagem no livro referido, não foi com propósitos vanguardistas, mas por desejar
dizer além do que a linguagem verbal permite.
De qualquer modo, iniciamos
um diálogo, trocamos cartas e daí
nasceu a poesia concreta. Não tive
papel relevante na criação do movimento mas, como havia desintegrado o discurso, discordei quando
propuseram criar "um novo verso". Trata-se de criar uma nova
sintaxe, sugeri, e eles a criaram: a
sintaxe visual do poema sem discurso. O nome "poesia concreta",
tomaram emprestado à arte concreta, que já era praticada no Rio e
em São Paulo, desde 1950.
Batizado o movimento, fez-se a
1ª Exposição Nacional de Arte
Concreta, em dezembro de 1956,
em São Paulo, e em março de 1957,
no Rio. O órgão difusor do movimento foi o Suplemento Dominical
do "Jornal do Brasil", dirigido por
Reynaldo Jardim, do qual eu era
parceiro e colaborador.
Já nessa primeira exposição, surgiram as divergências, que apontei
então num artigo: os concretistas
paulistas eram demasiado cerebrais, substituíam a criatividade
pela teoria. A ruptura se deu, seis
meses depois, quando Haroldo nos
mandou um texto afirmando que a
poesia concreta seria feita segundo
equações matemáticas. Telefonei
para Augusto e lhe disse que não
podia concordar com semelhante
tese, já que se tratava de algo inviável. Eles, como sempre, não arredaram pé e, assim, publicamos o
texto deles e, ao lado, um meu, afirmando a poesia concreta como
"experiência fenomenológica".
Cindiu-se o movimento, mas continuamos a publicar seus textos no
SDJB, enquanto eles quiseram.
Quase dois anos após a ruptura,
Décio me telefona. Falei com Reynaldo e marcamos um almoço, ocasião em que revelou o motivo por
que nos procurara. Afirmou que a
indústria brasileira sempre fora
uma indústria de consumo e só então se tornava indústria de base;
com a poesia brasileira ocorria a
mesma coisa: sempre se fez uma
poesia de consumo e era preciso fazer, finalmente, uma poesia de base. Ele trazia no bolso um novo manifesto, propondo a criação dessa
nova poesia. Então, falei eu:
- Décio, a ruptura do movimento
concretista se deu porque vocês
entenderam que a poesia teria que
ser feita segundo equações matemáticas, não é verdade? Pois bem,
já faz mais de ano que isso aconteceu. Vocês fizeram a tal poesia matemática? Não fizeram. Agora você
nos vem com um novo manifesto,
pregando essa tal poesia de base.
Não vamos publicá-lo. Volta para
São Paulo, faz com teus companheiros os poemas de base e nos
manda que publicaremos. Mais um
manifesto prometendo uma poesia
que nunca será feita, isso não.
A conversa terminou aí. Ele se foi
e nunca nos mandou os tais poemas de base, que, como prevíamos,
jamais foram escritos. Redigir manifestos sempre foi uma mania das
vanguardas, quase sempre prometendo coisas que não se realizam.
O movimento neoconcreto só
surgiu dois anos após o rompimento com os paulistas. Não foi resultado disso mas, sim, do rumo diferente que tínhamos tomado, nós,
os pintores, escultores e poetas do
grupo carioca. Quando surgiu a
idéia de fazermos uma exposição
dos nossos trabalhos, propus que
nos denominássemos neoconcretos, pois o que fazíamos já quase
nada tinha a ver com o concretismo. Então escrevi o manifesto que,
em vez de pretender ser um "plano
piloto", era uma tentativa de revelar o que de novo já havíamos feito.
Quando publiquei, em 1976, o
"Poema Sujo", Décio veio a público
negar-lhe qualquer valor ou qualidade, talvez porque a crítica brasileira o tivesse unanimemente
aplaudido. Não foi um gesto bonito, mas o compreendo e desculpo.
É que Décio Pignatari, embora inteligente e culto, nunca foi poeta,
nem de consumo nem de base, o
que não me impede de cumprimentá-lo pelos seus 80 anos.
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