São Paulo, Quinta-feira, 12 de Agosto de 1999
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CONCERTO - CRÍTICA
Arnaldo Cohen desfralda Chopin

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

Chopin é o mais popular, mais acessível, mais diretamente emotivo dos compositores românticos. Chopin é o mais refinado, mais recôndito, mais idiossincrático dos compositores românticos. Na visão da musicologia atual, nenhuma das frases está errada; e a dificuldade para qualquer pianista é mostrar que também não são incompatíveis. Acessível e recôndito, expansivo e concentrado, o Chopin de Arnaldo Cohen é um modelo desse gênio ambíguo, como ficou claro em seu lindo concerto, no teatro da Hebraica, segunda-feira.
As ambivalências de Chopin (1810-49) não se restringem ao domínio da expressão. A própria estrutura da música se nutre de fontes diversas, combinadas de modo original. Contraponto barroco e ópera lírica italiana podem se mesclar com lembranças da música popular polonesa e da sofisticação dos salões parisienses. No caso das Baladas, interpretadas por Cohen, são essas quatro influências que vêm se unir num gênero novo.
Narrativa e lírica parecem ser o contrário uma da outra, mas não aqui.
Cada Balada conta uma história, mas na qual nada acontece, apesar da expressão elegíaca. Nem forma-sonata, nem simples alternância de verso e refrão, a Balada, para Chopin, é um meio para a exploração de melodias repetitivas, encantatórias, que aparecem e reaparecem no fluxo contínuo da música.
Arnaldo Cohen, nunca menos do que um pianista generoso e nunca menos do que muito claro, revelou-se um grande artista das transições, que são sempre as passagens menos generosas e mais artificiosas da composição.
Tocou as Baladas com um sentido pessoal da forma: muito elástica, a música cedendo ao empuxo das modulações e dos temas. Que isso não se traduza jamais em mascaramento das notas, nem nos arpejos mais virtuosísticos. É uma dessas virtudes que a gente tende a aceitar como natural -natural para ele.
Esse foi o Chopin mais moderno do programa. Na segunda parte, ainda se ouviriam mais dois. O primeiro foi o Chopin-que-todo-mundo-gosta, uma seleção incluindo o Noturno op. 9/2, a Fantasia-Improviso e três estudos. Não parece ser o Chopin que o pianista mais gosta: foi bonito, mas não memorável e não chegou a iluminar essas peças tão conhecidas com alguma luz desconhecida.
A grande surpresa estava reservada para o último Chopin, dos Scherzi nº 1 e nº 2. A mistura de gêneros, que já se escutava nas Baladas, atinge aqui um idioma ao mesmo tempo mais íntimo e mais público.
A música de Chopin é, aliás, uma das primeiras a ser concebida como espetáculo, pensada para uma platéia, embora nem sempre para o grande piano das grandes salas de concerto. (Certamente, não para esse piano, tão prejudicado pela acústica dura do teatro -e pelos arranjos de flores!)
Reconhecido internacionalmente como um grande intérprete de Liszt, Arnaldo Cohen teve a coragem de fazer dos Scherzi uma música mais lisztiana, o que hoje soa, mais uma vez, como audácia. Diabolismo, intemperança, gestualidade: não é o que se associa imediatamente, agora, à música de Chopin. Mas faz sentido e é, no mínimo, tão legítimo quanto tocar Liszt à maneira de Chopin, como tem sido o caso nos últimos anos.
As ironias de Chopin têm muito a ganhar com isso. Nenhum compositor quer permanecer preso à própria consciência; mas liberação ou transcendência são aspirações que só se realizam em alguns instantes e de certos modos. Um dos modos, para Chopin, é Liszt, como agora se sabe, novamente, graças a Arnaldo Cohen.
Para ser perfeito, faltaria só uma transcendência última do próprio pianista, cuja generosidade e clareza, às vezes, soam também como impedimento. Mas quem pode reclamar de um concerto tão bonito? Acessível e refinado, virtuosístico sem afetação, Arnaldo Cohen é sempre um prazer de ouvir -e uma educação.

E-mail: nestro@uol.com.br


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