São Paulo, quinta-feira, 12 de setembro de 2002

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MÚSICA/CRÍTICA

País brutalizado protagoniza trilha de "Cidade de Deus"

DA REPORTAGEM LOCAL

Híbrida, a recém-lançada trilha do filme "Cidade de Deus" segue por dois caminhos distintos, ao mesmo tempo.
No primeiro deles, há a trilha sonora original, instrumental e incidental. Criada pelos compositores Antônio Pinto e Ed Côrtes, essa parte diverge do roteiro mais comum da música de cinema, quase sempre de tom orquestrado, épico, emocional.
Diverge, também, da própria glamourização da crueldade que o filme emoldura. Nada grandiloquente, o tom é sempre de samba-funk, como a dizer que a favela possui ginga e quadril que rebola sincronizada ao gemido da cuíca.
Mesmo que o samba penetre nos poros dos funks de Pinto e Côrtes, o resultado sonoro reaproxima seu trabalho do do filme em si -como este, a trilha lembra Quentin Tarantino, por sua vez fortemente influenciado pelos climas funky carnudos dos filmes de blaxploitation da década de 70.
Talvez sejam, filme e trilha, simulacros brasileiros do bangue-bangue urbano e pós-moderno de Tarantino, mas com uma crucial diferença: tiroteios classe A e gângsteres engravatados, com quem nos identificávamos sem que nunca os houvéssemos visto, foram trocados por gente e tiros bem reais, em exposição nas ruas das maiores cidades brasileiras.
Para apoiar essa mirada, concorre a fortíssima outra parte da trilha, elaborada como compilação de ritos samba-black-brasileiros de Cartola, Tim Maia, Hyldon.
Os temas pescados são previsíveis -como a bela "Preciso Me Encontrar", de Candeia (já exaurida na releitura de Marisa Monte), e "Alvorada", ambas na voz de Cartola, ou a suave "Na Rua, na Chuva, na Fazenda" (Hyldon).
Mas a obviedade (o menu inclui até a manjada "Metamorfose Ambulante", do genial Raul Seixas) se desmonta no contato da trilha com o enredo e a edição do filme.
Parece banal associar "Cidade de Deus" com discursos de favela feliz ("alvorada lá no morro, que beleza/ ninguém chora, não há tristeza/ não existe dissabor") e busca de paz ("quero assistir ao sol nascer/ ver as águas dos rios correr/ ouvir os pássaros cantar").
Mas a banalidade se reverte em ironia das mais cruéis quando confrontada com as cenas de despedida frustrada e de assassinato no morro que a acompanham. Havia um Brasil que morreu, parecem cantar Cartola, Hyldon, Tim Maia Racional, Raul Seixas.
Isso se intensifica quando Wilson Simonal canta a malandra "Nem Vem Que Não Tem" sob cenas de assalto a banco e morte. É cópia de Tarantino? Sim, mas aqui se conhece a história de Simonal, negro ascendente e logo depois arruinado para sempre, direitista por opção ou condição, vítima das crueldades brasileiras que vêm de fora para dentro. A associação é corajosa, atributo que percorre a parte dois da trilha.
Por fim, cimentando uma parte na outra, há o samba inédito "Convite para Vida", cantado por Seu Jorge, ator do filme e um dos mais atordoantes novos talentos musicais daqui. Em seus olhos negros e em seu vozeirão mestiço, morre Tarantino e renasce o Brasil, talentoso, cínico e brutalizado.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


Cidade de Deus    
Artistas: Antônio Pinto e Ed Côrtes
Lançamento: BMG
Quanto: R$ 25, em média




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