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MÚSICA/CRÍTICA
País brutalizado protagoniza trilha de "Cidade de Deus"
DA REPORTAGEM LOCAL
Híbrida, a recém-lançada
trilha do filme "Cidade de
Deus" segue por dois caminhos
distintos, ao mesmo tempo.
No primeiro deles, há a trilha
sonora original, instrumental e
incidental. Criada pelos compositores Antônio Pinto e Ed Côrtes,
essa parte diverge do roteiro mais
comum da música de cinema,
quase sempre de tom orquestrado, épico, emocional.
Diverge, também, da própria
glamourização da crueldade que
o filme emoldura. Nada grandiloquente, o tom é sempre de samba-funk, como a dizer que a favela
possui ginga e quadril que rebola
sincronizada ao gemido da cuíca.
Mesmo que o samba penetre
nos poros dos funks de Pinto e
Côrtes, o resultado sonoro reaproxima seu trabalho do do filme
em si -como este, a trilha lembra
Quentin Tarantino, por sua vez
fortemente influenciado pelos climas funky carnudos dos filmes de
blaxploitation da década de 70.
Talvez sejam, filme e trilha, simulacros brasileiros do bangue-bangue urbano e pós-moderno
de Tarantino, mas com uma crucial diferença: tiroteios classe A e
gângsteres engravatados, com
quem nos identificávamos sem
que nunca os houvéssemos visto,
foram trocados por gente e tiros
bem reais, em exposição nas ruas
das maiores cidades brasileiras.
Para apoiar essa mirada, concorre a fortíssima outra parte da
trilha, elaborada como compilação de ritos samba-black-brasileiros de Cartola, Tim Maia, Hyldon.
Os temas pescados são previsíveis -como a bela "Preciso Me
Encontrar", de Candeia (já exaurida na releitura de Marisa Monte), e "Alvorada", ambas na voz de
Cartola, ou a suave "Na Rua, na
Chuva, na Fazenda" (Hyldon).
Mas a obviedade (o menu inclui
até a manjada "Metamorfose Ambulante", do genial Raul Seixas) se
desmonta no contato da trilha
com o enredo e a edição do filme.
Parece banal associar "Cidade
de Deus" com discursos de favela
feliz ("alvorada lá no morro, que
beleza/ ninguém chora, não há
tristeza/ não existe dissabor") e
busca de paz ("quero assistir ao
sol nascer/ ver as águas dos rios
correr/ ouvir os pássaros cantar").
Mas a banalidade se reverte em
ironia das mais cruéis quando
confrontada com as cenas de despedida frustrada e de assassinato
no morro que a acompanham.
Havia um Brasil que morreu, parecem cantar Cartola, Hyldon,
Tim Maia Racional, Raul Seixas.
Isso se intensifica quando Wilson Simonal canta a malandra
"Nem Vem Que Não Tem" sob
cenas de assalto a banco e morte.
É cópia de Tarantino? Sim, mas
aqui se conhece a história de Simonal, negro ascendente e logo
depois arruinado para sempre,
direitista por opção ou condição,
vítima das crueldades brasileiras
que vêm de fora para dentro. A
associação é corajosa, atributo
que percorre a parte dois da trilha.
Por fim, cimentando uma parte
na outra, há o samba inédito
"Convite para Vida", cantado por
Seu Jorge, ator do filme e um dos
mais atordoantes novos talentos
musicais daqui. Em seus olhos negros e em seu vozeirão mestiço,
morre Tarantino e renasce o Brasil, talentoso, cínico e brutalizado.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
Cidade de Deus
Artistas: Antônio Pinto e Ed Côrtes
Lançamento: BMG
Quanto: R$ 25, em média
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