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São Paulo, sexta-feira, 12 de setembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A natural história natural

No largo do Machado, há um cara que vende livros e revistas usadas. Volta e meia, a polícia vai lá e apreende o seu material, alegando que ele não tem licença para ali se estabelecer. Como é caminho para o meu escritório, todos os dias ele me oferece algum livro que julga apropriado para mim. Outro dia, me fez comprar uma "História Natural", nada atualizada, de editora não mais existente e de autor anônimo.
Como era hora do almoço, ele me deu o livro e pediu algum para enfrentar o prato feito de uma lanchonete próxima. Aceitei a transação, subi à minha sala e abri a "História Natural" aleatoriamente. Na página 162, há uma lição sobre os invertebrados. Fiquei sabendo que eles se dividem em artrópodes, moluscos, vermes, equinodermos, celenterados e protozoários.
Entre os artrópodes, destacam-se os moluscos, "têm o corpo mole, uns vivem dentro de uma concha, outros não. Exemplos: lesma, polvo, caracol. O caracol é célebre pela ausência de cérebro". Mas são de moral ilibada, politicamente corretos, éticos e nenhum deles abre contas nos paraísos fiscais. Mas há os protozoários: "São os seres mais simples, apesar de infinitamente pequenos, constituem sério perigo para a vida humana e só podem ser vistos através de microscópios". Isso antigamente, nos começos da era tecnológica. Hoje podem ser vistos na TV, na mídia em geral, nos teatros, cinemas, nas assembléias e nos desfiles disso ou daquilo. Alguns chegam a ser cronistas -como é o meu caso.
No capítulo das generalidades, o manual informa que "os animais não podem viver sem alimento, uns comem carne, como o gato e a onça, outros alimentam-se de ervas ou grãos, como a galinha e o peru. Outros, os mais numerosos, comem de tudo."
E como aquele personagem de Kafka, os animais estão sujeitos a metamorfoses. "Há aqueles que têm mais ou menos a mesma forma desde que nascem e outros que mudam de forma devido às circunstâncias." E, entre as circunstâncias, há o capítulo dedicado aos meios de defesa de cada animal. Há aqueles que se defendem com chifres, como o veado, o touro, o carneiro; com os dentes, como a onça, o cão, o porco; com as patas, como o cavalo, o burro e a zebra; com os pêlos, como o porco-espinho; com o casco, como a tartaruga, o tatu, a ostra; com a cauda, como o jacaré, a baleia; com a tromba, como o elefante, com o mau cheiro que exalam, como o percevejo, o gambá; com a cor que tomam, como a perereca, o cameleão e alguns peixes de água doce ou salgada; com a atitude que adotam, fingindo-se de mortos.
Certos animais -ensina o manual- comunicam-se por meio de uivos ou guinchos. Volta e meia, ficamos espantados como eles ocupam tribunas, ensinam nas cátedras, falam ao telefone, deixam recados nas secretárias eletrônicas, dão entrevistas, gravam CDs que terminam nas paradas de sucesso e escrevem nos jornais -como eu próprio. Tudo é possível -dizia Machado de Assis, que dedicou um de seus livros ao primeiro verme que devorasse as frias carnes de seu cadáver.
Por falar em verme, lembrei-me de um filme de Monicelli, em que Brancaleone aceita em seu estropiado exército um príncipe desterrado de Bizâncio, expulso pelo pai por vagabundagem, covardia e lascívia. Numa das enrascadas em que se metem, os dois estão para ser escalpelados, e Brancaleone chama o seu desastrado companheiro de "verme de Bizâncio".
Bem, isso foi no tempo das Cruzadas, e chamar alguém de verme durou até recentemente, quando eram comuns as polêmicas e duelos verbais nas câmaras e na imprensa em geral. Era, aliás, a ofensa máxima que um editorialista podia fazer ao editorialista de outro jornal e, muitas vezes, os dois eram um só editorialista trabalhando em dois jornais opostos politicamente.
Jorge Amado contava a história, desmentida veementemente pelo próprio João Clímaco de Bezerra, da dupla função de seu amigo na Redação de dois diários inimigos do Ceará. Às 18 horas, ele chegava ao jornal do governo e mandava bala na oposição. Às 19 horas, descia da Redação, atravessava a praça principal da cidade e ia escrever o editorial do adversário, mantendo polêmica consigo mesmo. Até que, na véspera de uma eleição, ele se excedeu e publicou um artigo de fundo -os editoriais antigamente eram chamados de "artigos de fundo" e procuravam ser demolidores de alguma coisa ou causa. Deu ao artigo o título de "Verme!" com ponto de exclamação e tudo, ponto que foi abolido pelos copidesques e pelos manuais de redação em vigor.
Atravessou a rua, subiu à Redação rival e sabendo de antemão o conteúdo do artigo adversário, caprichou num editorial intitulado "Verme é a sua mãe!".
Foi um pasmo em todo o Ceará. O artigo terminava com o desafio de um dos editorialistas ao outro, exigindo que o "canalha" descesse à praça pública para um "duelo até o último sangue". Duelo que foi obstado pelo arcebispo local, que enviou às duas Redações uma mensagem pedindo cordura e desarmamento de espíritos. Verdadeira ou inventada, a briga revela que a história natural é tão natural que até os homens atacam e se defendem como podem.


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