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CARLOS HEITOR CONY
A natural história natural
No largo do Machado, há um
cara que vende livros e revistas usadas. Volta e meia, a polícia vai lá e apreende o seu material, alegando que ele não tem licença para ali se estabelecer. Como é caminho para o meu escritório, todos os dias ele me oferece algum livro que julga apropriado
para mim. Outro dia, me fez comprar uma "História Natural", nada atualizada, de editora não
mais existente e de autor anônimo.
Como era hora do almoço, ele
me deu o livro e pediu algum para
enfrentar o prato feito de uma
lanchonete próxima. Aceitei a
transação, subi à minha sala e
abri a "História Natural" aleatoriamente. Na página 162, há uma
lição sobre os invertebrados. Fiquei sabendo que eles se dividem
em artrópodes, moluscos, vermes,
equinodermos, celenterados e
protozoários.
Entre os artrópodes, destacam-se os moluscos, "têm o corpo mole,
uns vivem dentro de uma concha,
outros não. Exemplos: lesma, polvo, caracol. O caracol é célebre pela ausência de cérebro". Mas são
de moral ilibada, politicamente
corretos, éticos e nenhum deles
abre contas nos paraísos fiscais.
Mas há os protozoários: "São os
seres mais simples, apesar de infinitamente pequenos, constituem
sério perigo para a vida humana
e só podem ser vistos através de
microscópios". Isso antigamente,
nos começos da era tecnológica.
Hoje podem ser vistos na TV, na
mídia em geral, nos teatros, cinemas, nas assembléias e nos desfiles disso ou daquilo. Alguns chegam a ser cronistas -como é o
meu caso.
No capítulo das generalidades,
o manual informa que "os animais não podem viver sem alimento, uns comem carne, como o
gato e a onça, outros alimentam-se de ervas ou grãos, como a galinha e o peru. Outros, os mais numerosos, comem de tudo."
E como aquele personagem de
Kafka, os animais estão sujeitos a
metamorfoses. "Há aqueles que
têm mais ou menos a mesma forma desde que nascem e outros
que mudam de forma devido às
circunstâncias." E, entre as circunstâncias, há o capítulo dedicado aos meios de defesa de cada
animal. Há aqueles que se defendem com chifres, como o veado, o
touro, o carneiro; com os dentes,
como a onça, o cão, o porco; com
as patas, como o cavalo, o burro e
a zebra; com os pêlos, como o porco-espinho; com o casco, como a
tartaruga, o tatu, a ostra; com a
cauda, como o jacaré, a baleia;
com a tromba, como o elefante,
com o mau cheiro que exalam,
como o percevejo, o gambá; com a
cor que tomam, como a perereca,
o cameleão e alguns peixes de
água doce ou salgada; com a atitude que adotam, fingindo-se de
mortos.
Certos animais -ensina o manual- comunicam-se por meio
de uivos ou guinchos. Volta e
meia, ficamos espantados como
eles ocupam tribunas, ensinam
nas cátedras, falam ao telefone,
deixam recados nas secretárias
eletrônicas, dão entrevistas, gravam CDs que terminam nas paradas de sucesso e escrevem nos
jornais -como eu próprio. Tudo
é possível -dizia Machado de
Assis, que dedicou um de seus livros ao primeiro verme que devorasse as frias carnes de seu cadáver.
Por falar em verme, lembrei-me
de um filme de Monicelli, em que
Brancaleone aceita em seu estropiado exército um príncipe desterrado de Bizâncio, expulso pelo
pai por vagabundagem, covardia
e lascívia. Numa das enrascadas
em que se metem, os dois estão
para ser escalpelados, e Brancaleone chama o seu desastrado
companheiro de "verme de Bizâncio".
Bem, isso foi no tempo das Cruzadas, e chamar alguém de verme
durou até recentemente, quando
eram comuns as polêmicas e duelos verbais nas câmaras e na imprensa em geral. Era, aliás, a
ofensa máxima que um editorialista podia fazer ao editorialista
de outro jornal e, muitas vezes, os
dois eram um só editorialista trabalhando em dois jornais opostos
politicamente.
Jorge Amado contava a história, desmentida veementemente
pelo próprio João Clímaco de Bezerra, da dupla função de seu
amigo na Redação de dois diários
inimigos do Ceará. Às 18 horas,
ele chegava ao jornal do governo
e mandava bala na oposição. Às
19 horas, descia da Redação, atravessava a praça principal da cidade e ia escrever o editorial do adversário, mantendo polêmica
consigo mesmo. Até que, na véspera de uma eleição, ele se excedeu e publicou um artigo de fundo -os editoriais antigamente
eram chamados de "artigos de
fundo" e procuravam ser demolidores de alguma coisa ou causa.
Deu ao artigo o título de "Verme!" com ponto de exclamação e
tudo, ponto que foi abolido pelos
copidesques e pelos manuais de
redação em vigor.
Atravessou a rua, subiu à Redação rival e sabendo de antemão o
conteúdo do artigo adversário,
caprichou num editorial intitulado "Verme é a sua mãe!".
Foi um pasmo em todo o Ceará.
O artigo terminava com o desafio
de um dos editorialistas ao outro,
exigindo que o "canalha" descesse à praça pública para um "duelo até o último sangue". Duelo
que foi obstado pelo arcebispo local, que enviou às duas Redações
uma mensagem pedindo cordura
e desarmamento de espíritos.
Verdadeira ou inventada, a briga
revela que a história natural é tão
natural que até os homens atacam e se defendem como podem.
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