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LIVROS
Crítica/"Compaixão"
Toni Morrison retrata aridez de sociedade em construção
Americana retoma tema da escravidão a partir da relação de quatro mulheres
TATIANA SALEM LEVY
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Compaixão", mais
recente livro da
norte-americana
Toni Morrison, vencedora do
Nobel de Literatura em 1993,
retoma com força impressionante o tema da escravidão, explorado antes em "Amada".
O romance, passado em
1690, anuncia logo de início a
dor que perpassa cada uma das
suas 156 páginas: Florens, uma
menina negra de sete ou oito
anos, narra o momento em que
sua mãe a entrega, como pagamento da dívida de seu proprietário, ao fazendeiro anglo-holandês Jacob Vaark.
A menina é levada para a fazenda de Vaark, onde residem
Rebekka, a infeliz mulher dele;
Lina, uma escrava indígena que
sobreviveu à varíola; e Sorrow,
uma escrava negra. A narrativa
se desenrola a partir das relações sociais e afetivas entre essas quatro mulheres, que têm
como pilar o fazendeiro anglo-holandês. Quando ele morre, as
consequências são devastadoras, e o sentimento de família
que as unia termina por se diluir na aridez da terra e da sociedade norte-americana em
construção.
O texto tem duas vozes que
se intercalam: uma em terceira
pessoa, outra em primeira. O
narrador em terceira acompanha a cada hora um personagem, alternando não só o foco,
mas também o tempo narrativo, que navega entre passado e
presente. Com uma linguagem
tão seca e cruel quanto a história que conta, Morrison consegue, nesse pequeno romance,
mergulhar na formação individual de cada personagem assim
como na formação de seu país,
numa época anterior ao racismo, quando a escravidão ainda
não era uma questão de cor.
Mas é no relato em primeira
pessoa que o vigor de sua escrita alcança o ápice. Florens tem
cerca de 16 anos quando a patroa, doente, a manda em busca
do ferreiro, por quem a adolescente está tomada de paixão.
O discurso que a escrava dirige a ele constrói-se numa espécie de língua estrangeira no interior da própria língua, como
definiu Gilles Deleuze em seus
trabalhos sobre Kafka e Melville. No início, o leitor estranha o
sotaque esquisito, a sintaxe
inabitual, mas logo se envolve
com a voz dessa mulher que
tem tantas dores e nunca chora.
Dessa mulher que vem de longe, de outra cultura, e que será
sempre, em um certo sentido,
estrangeira.
Florens está obcecada pelo
ferreiro, e sua fala é a de uma
mulher em desespero, que precisa, a qualquer custo, encontrar o homem amado. Se, por
um lado, é o desejo por ele que a
move, é também esse desejo
que a torna ainda menos livre.
Não é sem frieza que ele lhe diz:
"Seja dona de si mesma, mulher, e deixe a gente em paz",
acusando-a de ser escrava não
por ter sido comprada, como
ela afirma, mas por ter se feito
uma. A partir de então, quando
entende que não ficará com ele,
a adolescente vive, além da dor
do passado, a dor do futuro que
não se realizará, definhando
por dentro, cada vez mais tragada pela aspereza da vida.
Travessia corajosa
Apesar de cruel, a travessia é
marcada pela coragem e pela
solidariedade entre as personagens. Ao ver uma águia morrer,
Florens pergunta à Lina sobre
seus ovos: "Sobrevivem?" Ao
que Lina responde: "Nós sobrevivemos". E aqui a sobrevivência é uma vitória, o resultado
dos laços de afeto entre essas
mulheres de quem a vida exige
a mesma força.
Mas é só no final que o título
do livro emerge em todo o seu
esplendor. Uma voz inesperada
aparece e, com o impacto provocado pela doçura em meio a
tanta aspereza, traz à tona o
sentido da palavra compaixão.
TATIANA SALEM LEVY é escritora, autora de
"A Chave de Casa" (Record).
COMPAIXÃO
Autora: Toni Morrison
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36,50 (160 págs.)
Avaliação: ótimo
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