São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"CONVERSA NA SICÍLIA"

Romance traz personagem que volta à cidade da infância para o aniversário da mãe solitária

Elio Vittorini converte recordação em invenção

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Seria improvável que Elio Vittorini (1908-1966) qualificasse sua obra-prima "Conversa na Sicília" (1937) de maravilhosa. Na verdade, seria improvável que o escritor italiano, considerado um dos precursores do neo-realismo, empregasse qualquer tipo de adjetivo para qualificá-la: sua linguagem é precisa, seca, substantiva, agreste.
E, no entanto, "Conversa na Sicília" é exatamente isto: um livro maravilhoso como poucos.
O neo-realismo de Vittorini é muito peculiar, se é que se pode falar em neo-realismo nessa narrativa de um homem que volta às montanhas da Sicília de sua infância, para o aniversário da mãe solitária.
A linguagem substantiva, ligada a uma realidade social precária, reduzida ao mínimo, se coaduna com uma espécie de acontecimento feito da falta de acontecimentos.
A literatura passa a ser o próprio acontecimento ao transformar a falta de fatos e de esperança, o desespero da calmaria em que vive essa gente, numa nova forma, numa nova possibilidade de narrar, que aponta mais para a possibilidade da criação do que para o fato narrado ou para a ausência de fato narrado, e assim o redime, dá a ele "dignidade na miséria".
Em sua viagem até a pequena cidade da mãe, o narrador é só ouvidos, um sujeito de passagem por uma realidade de vozes desesperadas ou fantasmagóricas (e muitas vezes tremendamente engraçadas no seu desespero e na sua resignação), como alguém que ouve conversas ao redor sem saber se ainda sonha ou se já está acordado.
Sob o véu da nostalgia da infância e da volta à terra natal ("a crença dos sete anos" que todo mundo procura no fundo da memória para se refugiar quando se sente cansado do presente), Vittorini acaba por converter a recordação em invenção.
Voltar se transforma num ato de criação no presente. A mãe é agora, ao mesmo tempo, "uma aparição e a lembrança dela, duas vezes real".
A Sicília de que fala o autor "só porventura é a Sicília", porque passa a fazer parte de uma "quarta dimensão", um lugar que é todos os lugares e para onde tudo conflui, o passado e o presente, os vivos e os mortos.
De todas essas conversas, nenhuma pode ser mais engraçada e comovente do que a que o narrador tem com a mãe, que ele acompanha de casa em casa, quando ela vai aplicar injeções nos doentes da cidade.
Falam do passado e da família, do marido que a abandonou, do filho morto na guerra, do desejo, do sexo e de um amante que ela nunca mais viu.
As coisas mais espantosas vão sendo ditas casualmente e com uma brutalidade cômica de sentimentos, no desespero da calmaria.
Assim também, muitas vezes o que ela diz tem menos importância do que o que revela ao se contradizer em permanência e que acaba permitindo uma chave analógica para o tipo de neo-realismo que propõe Vittorini: não o retrato sociológico de uma realidade, mas a idéia de que a riqueza dessa realidade para a literatura depende da subjetividade do olhar lançado sobre ela.
A literatura aqui é antes de mais nada uma forma de perguntar, para colher respostas estranhas: "Pois era isso que eu queria, as respostas estranhas".
As conversas vão se tornando mais e mais absurdas e oníricas em sua realidade paradoxalmente bruta e seca, a ponto de deixar no leitor a impressão de uma parábola cuja moral não será nunca totalmente compreensível.
Os sicilianos de "Conversa na Sicília" lembram, nas últimas páginas do livro, os dublinenses de Joyce, a discorrer sobre os vivos e os mortos, sem nos deixar saber de qual lado estão.

Conversa na Sicília


    
Autor: Elio Vittorini
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 39




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