São Paulo, sábado, 12 de novembro de 2005

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JORNALISMO

Obra que aborda a implantação do Projeto Folha é relançada com capítulo inédito sobre os atuais desafios editoriais

Novo "Mil Dias" atualiza rumos da imprensa

ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
EDITORA DE TREINAMENTO

Tal como a coruja da filosofia clássica, que levanta vôo apenas ao entardecer, a história da imprensa profissional e independente no Brasil se consuma apenas quando o jornalismo parece viver uma crise final? Parece ser a questão que recoloca o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva com a reedição de "Mil Dias", a história da grande transformação do jornalismo da Folha.
Seu autor é um narrador privilegiado: foi um dos executivos condutores do processo liderado pelo diretor de Redação Otavio Frias Filho, recém-empossado em 1984, data a partir da qual são contados os primeiros mil dias do Projeto Folha -uma política editorial independente e formas racionais de trabalho que influenciaram a imprensa do país.
O livro detalha essa história desde a gestação do projeto, quando a empresa é comprada por Octavio Frias de Oliveira em 1962 e passa por modernização em vários níveis -financeiro, empresarial, industrial-, até 1987, quando os movimentos mais radicais estão concluídos e o jornal começa a corrigir sua trajetória.
Não é um relato emotivo ou "romanceado" como "O Reino e o Poder" (história do "New York Times" contada por Gay Talese), adverte o autor no novo prefácio -na verdade um novo capítulo de 23 páginas em que Lins da Silva atualiza a discussão sobre o papel e as perspectivas da imprensa.
Em longos trechos, de fato, a narrativa mantém-se desapaixonada, "limpa", mesmo quando trata de crises como a que levou 65% dos jornalistas da Folha, dentre os quais editores e repórteres especiais, a protestar em 1985 contra a maneira pela qual o projeto era implantado, tida como "burocrática e desumana".
Revolta anticomputadores
Apresentado como tese de livre docência à Universidade de São Paulo, o trabalho procurava fazer uma análise "o mais científica possível" dos métodos utilizados para mudar a maneira de fazer jornal na Folha. Mas é também uma reportagem minuciosa sobre um episódio pioneiro, arrojado e turbulento. Alguns trechos, vistos agora à distância, chegam a ser divertidos -como a indignação contra os computadores, em 1983.
O leitor pode se surpreender com o barulho da reação a princípios fundamentais em qualquer jornal que se preze: abordagem crítica, isenção jornalística, correção de erros, padronização do texto, controle de qualidade. "Mil Dias", seguindo o projeto editorial que documenta, abre espaço para os opositores e seus argumentos a cada fase que relata.
O livro que está sendo relançado pela Publifolha tem ainda um interesse que ultrapassa o do registro historiográfico. Ao discutir os erros e acertos do Projeto Folha, Lins da Silva enuncia um dos problemas mais atuais da imprensa. "O jornal diário corre risco efetivo de não sobreviver", escreve no novo prefácio. Para evitar esse fim, diz o autor, é preciso "arrojo para mudar drasticamente as suas características".
Diagnóstico e prescrição geral coincidem com fatos e análises mais recentes. O balanço de 700 jornais americanos de abril a setembro, anunciado na última terça-feira, mostra circulação 2,6% menor que no mesmo período de 2004. Dos dez maiores, apenas o terceiro, o "New York Times", não perdeu leitores: suas vendas foram de 1,126 milhão de exemplares -aumento de 0,5%.
No Brasil, a circulação caiu de 2000 a este ano, quando a situação se estabilizou. Mas a competição, para além do mercado, é pelo tempo do leitor. Uma pesquisa divulgada há três semanas pela Universidade Estadual Ball (Indiana, EUA) constatou que o consumidor de mídia americano dedica 12,2 minutos por dia aos jornais impressos -o número cai para 3,6 minutos para leitores de 25 a 34 anos. O estudo é considerado pioneiro por acompanhar de perto 400 pessoas durante mais de 5.000 horas, em vez de se basear em respostas a questionários.

Salvando o jornalismo
"O setor precisa de muitas idéias loucas", reclama Philip Meyer, professor da Universidade da Carolina do Norte e autor de "The Vanishing Newspaper: Saving Journalism in the Information Age" (o desaparecimento dos jornais: salvando o jornalismo na era da informação, publicado em 2004 nos EUA). O consenso acaba quando se discute como mudar.
Alguns executivos acreditam que é preciso contemplar os interesses cada vez mais particularistas dos leitores, como auto-aperfeiçoamento profissional, físico, psicológico e estético, consumo, lazer, cuidados com a casa.
Já para Lins da Silva, a imprensa diária só sobrevive se atender bem à demanda de um público cada vez mais concentrado numa elite intelectual e politicamente bem informada. Nessa direção, sugere o aprofundamento da cobertura e o aumento da qualidade, ou sofisticação, editorial.
"O "USA Today" [maior jornal americano, com 2,296 milhões de exemplares, e um dos inspiradores do Projeto Folha nos anos 80] adotou reportagens maiores, a "New Yorker" [revista das mais prestigiadas no mundo] voltou aos textos mais longos e o "Wall Street Journal" [segundo jornal dos EUA, com 2,084 milhões de cópias] nunca deixou de tê-los."
Ambos os jornais, no entanto, perderam circulação nos últimos seis meses e o "Journal" está adotando nas edições internacionais o formato tablóide, menor, a exemplo dos principais jornais ingleses. Menos páginas em tamanho menor também vêm sendo anunciadas por jornais médios dos EUA, e alguns já lançam tablóides gratuitos para jovens.
A batalha pelo leitor de sete dias por semana está perdida, diz Tom Rosenstiel, autor de um dos mais discutidos livros sobre a situação atual da mídia ("Os Elementos do Jornalismo", lançado no Brasil em 2003 pela Geração Editorial). "Pessoas com menos de 35 anos querem notícias on-line, querem fazer buscas, ter controle da programação", declarou ao "St. Petersbourg Times". Mas, no levantamento da Ball, jovens de 18 a 24 anos não eram os maiores usuários da internet e raramente a usavam à procura de informação.

Pelo prazer de ler
"Os jornais estão se reinventando", afirma Janet Robinson, presidente da empresa que edita o "New York Times", em reportagem do próprio jornal. É uma reinvenção mais difícil que a dos anos 80, diz Lins da Silva, porque agora os jornais têm mais a perder. "Mas é ainda mais necessário agora que os líderes de circulação façam essa revolução."
A afirmação tem um quê de torcida de um jornalista distanciado das Redações -ex-diretor-adjunto de Redação da Folha e do "Valor Econômico", hoje diretor de relações institucionais da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas-, mas ainda consumidor intensivo de jornais. No seu escritório no décimo andar de um prédio na arborizada av. Nove de Julho, no Itaim (zona sul), lê todos os dias seis deles na versão impressa e mais três ou quatro estrangeiros na versão on-line.
Seu filho adolescente, a quem a reedição do livro é dedicada, ainda não abre com freqüência o exemplar do jornal cuja assinatura seu pai lhe deu de presente. Ainda. "Mil Dias: Seis Mil Dias Depois" expressa otimismo: "Para meu filho, com a esperança de que ele também possa usufruir desse prazer", diz a dedicatória.


Mil Dias: Seis Mil Dias Depois
Autor:
Carlos Eduardo Lins da Silva
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 37 (243 págs.)


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