|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros
A via-crúcis do corpo
MUSA DA GIVENCHY E PRIMEIRA TOP TRANSEXUAL DO MUNDO,A BRASILEIRA LEA T. CONTA SUA ESPINHOSA BATALHA CONTRA O PRECONCEITO
Entre cruzes e espinhos, a
brasileira Lea T., 28, abriu
seu caminho na moda.
Apadrinhada pelo amigo
Riccardo Tisci, diretor criativo da Givenchy, estrelou desfiles e campanha da grife
francesa. Em contrapartida,
ganhou o pesado título de
primeira top transexual do
mundo. "Se eu pensar nisso
de ser pioneira, nem saio da
cama", disse a modelo, em
entrevista exclusiva à Folha.
Estrela de editoriais das
maiores revistas do mundo,
incluindo o próximo número
da influente revista "Love",
Lea também está sendo assediada por grifes brasileiras,
que a convidaram para desfilar na São Paulo Fashion
Week. A top acaba de ser
contratada pela agência brasileira Way, que confirma os
convites, embora não revele
o nome das marcas.
Lea, que nasceu Leandro,
mora em Milão, para onde foi
ainda criança, por conta da
carreira internacional de seu
pai, o ex-jogador de futebol
Toninho Cerezo. De lá, por telefone, falou sobre família,
carreira e do preconceito que
enfrenta diariamente:
Folha - Por que você acha que
Tisci te chamou para ser um
dos rostos da Givenchy?
Lea T. - Pela nossa amizade. Conheci o Riccardo há
uns dez anos, ele era recém-formado e estava batalhando
pra entrar no mercado. Sempre nos ajudamos. E quando
ele me chamou para fazer trabalhos para a Givenchy, primeiro como assistente dele e
depois como modelo, eu estava passando por uma fase
muito difícil, de depressão...
O que estava acontecendo?
Assumir a realidade de ser
transexual é muito complicado. Sabe, comecei a pensar
no futuro e não via nenhuma
perspectiva, nada que pudesse ultrapassar o preconceito que eu sentia e sinto em
relação a mim. E aí veio o Riccardo, que é capaz de entender a complexidade de um
conflito humano. Ele me deu
uma voz para que eu pudesse
enviar uma mensagem.
E que mensagem é essa?
Que transexual não é sinônimo de promiscuidade, como muitos pensam. Que podemos ter amigos, batalhar
por uma carreira, por nossa
vida, que não precisamos
baixar a cabeça, com vergonha de nós mesmos.
Quando você fez uma foto
nua para a "Vogue" francesa,
qual foi seu objetivo?
Mostrar o que eu sou hoje,
meu corpo, minha verdade.
Infelizmente, tudo foi deturpado, muita gente repercutiu
aquilo como se fosse pornografia. Fiquei arrasada.
A indústria da moda posa de
tolerante quando o assunto é
gênero e sexualidade. Essa
imagem é verdadeira?
Não. É claro que existem
pessoas esclarecidas, mas tenho de me cuidar para não
ser explorada, ridicularizada. Numa sessão de fotos,
queriam que eu vestisse uma
camiseta com um pênis desenhado. Desse choque barato,
raso e burro não participo.
Fora aqueles que me pedem
pra ficar pelada entre uma foto e outra na frente de uma
equipe gigante. Sobra hipocrisia e falta respeito.
Você faz um tratamento preparatório para a operação de
mudança de sexo. Como isso
afeta seu corpo?
Tomo muitos hormônios,
que mexem com tudo, das
formas do corpo ao humor.
Fico cansada, com sono, triste, ansiosa. Além disso, para
ser modelo, tenho de me encaixar no padrão das meninas, mas, mesmo com os hormônios, minha estrutura óssea é masculina.
E como o fato de você ser famosa tem afetado sua família, especialmente seu pai,
que é um atleta conhecido?
Ai, é um sofrimento só. Escreveram em sites e jornais,
no Brasil, que meu pai me
odiava, que tinha nojo de
mim. Isso é mentira. Eu amo
o meu pai, e ele me ama. Não
é fácil pra ele entender as escolhas que fiz para a minha
vida, mas são dificuldades
que enfrentamos com amor.
Toparia desfilar na São Paulo
Fashion Week?
Quando publicaram absurdos sobre mim no Brasil,
eu chorei, fiquei com raiva,
falei que nunca mais pisaria
aí. Mas repensei essa questão
e acho que não tenho de ter
medo. Se aceitei ser modelo
para passar uma mensagem,
não posso me acovardar.
Você faz análise?
Sim. Preciso muito da análise porque sou discriminada
o tempo inteiro. Sou apedrejada diariamente: aguento
olhares tortos e ofensas da
hora que saio de casa até o
momento que entro de volta.
Se não fosse a análise, viveria
trancada e deprimida.
O que é ser feminina?
Desde pequena meu pai
dizia, "esse menino é muito
feminino". É engraçado, porque eu não era do tipo que
brinca de boneca e quer botar as roupas da mãe. Era
uma coisa minha, de jeito
mesmo. Acho que a feminilidade é assim, algo natural,
que se mostra no cotidiano.
Se eu saio de casa de moletom, sem make, pra andar
com o cachorro, ninguém
percebe que nasci homem.
com PEDRO DINIZ
Texto Anterior: Todo Lennon Próximo Texto: Cinema: Morre o produtor italiano Dino De Laurentiis, aos 91 Índice | Comunicar Erros
|